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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Olhar o futuro

Nada melhor para comemorar os 80 anos do que se preocupar com o futuro, com evidente prepotência, sem dúvida, mas que me faz sentir vivo como se tivesse 20

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Este mês completo 80 anos. É inevitável olhar para trás e indagar do que me arrepender, pois deveria ter dito sim quando disse não, e vice-versa. Mas lembro o ensinamento do poeta Miguel Torga: cadáver é o que não fui. Então, é melhor enterrá-lo.

Saudades brotam de familiares e amigos que se foram nesta longa estrada. Todavia, o caminho para superar a dor das ausências é olhar o futuro. Para minha alegria, ex-alunos e colegas resolveram ter esta data natalícia como oportunidade para pensar questões atuais. Promovem, portanto, na minha cara Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, nos dias 25 e 26 deste mês, debate para analisar quais medidas tomar em face do avanço do crime organizado e da inefetividade da Lei de Execução Penal, editada há 40 anos, de cuja elaboração participei.

Venho analisando providências de cunho preventivo e repressivo a serem adotadas, seja dentro do sistema penal, seja fora dele, em face do crime organizado. Ideias melhores surgirão nos debates, mas avanço algumas.

Segurança pública é direito humano primordial como pressuposto à fruição dos demais direitos. A criminalidade organizada tornou-se problema de cunho nacional (Estadão, 22/3, A3), cabendo ao governo federal coordenar contínua operação de combate, com os Estados e municípios, envolvendo o Ministério Público e os Poderes Legislativo e Judiciário.

Para tanto, é mister tanto a pesquisa aplicada à segurança pública como sistema de comunicação nacional para criar cadastro geral de pessoas processadas e condenadas, com indicação do modus faciendi e das condições do autor do fato. Este Serviço Brasileiro de Informações Criminais pode contar com meios do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust).

O confronto à criminalidade organizada exige inteligências policial e financeira integradas, em nível nacional, envolvendo permanente e sistemática análise de dados constantes de órgãos registradores, como o Coaf, pois é essencial a repressão à lavagem de dinheiro, expediente a que recorre a cúpula das instituições delituosas. Exemplo dessa cooperação está no recente acordo entre Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Coaf e Ministério da Justiça (Provimento 161/2014-CNJ) que permite o envio de informações do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis para fins de investigação criminal visando a descobrir lavagem de dinheiro.

A integração dos esforços voltados ao combate da delinquência organizada passa também pelo apoio financeiro aos governos estaduais para reaparelhamento das polícias e modernização tecnológica, especialmente investigativa, visando à formação de seus quadros e à eficiência, pois apenas 2% da autoria dos roubos é identificada.

Outra medida importante consiste na promoção contínua de forças-tarefa integrando diversas polícias (Federal, Militar, Civil e Rodoviária Federal), com planejamento que envolva também o Ministério Público e autoridades municipais. A repressão ao crescente roubo de cargas só terá êxito com forças-tarefa nas estradas e investigação da receptação profissional.

Ademais, nas regiões fronteiriças e portuárias, cabe contar com a participação da Receita Federal e das Forças Armadas na repressão ao contrabando de armas e drogas.

O crime organizado estende sua rede nos meandros do poder estatal, buscando cumplicidade dos agentes públicos, garantidora de proteção e impunidade. Logo, é necessário o combate à corrupção, seguindo especialmente o destino das verbas ofertadas às autoridades, o que exige consistente atuação conjunta dos órgãos de controle.

O crime organizado viceja em bairros das cidades médias e grandes, graças à desorganização social imperante, em que a ausência do Estado no fornecimento satisfatório de equipamentos sociais viabiliza a criação de Estado paralelo.

No enfrentamento dessa subcultura da violência, é prioritário, especialmente visando jovens e crianças, possibilitar centros de convivência onde se expanda a socialidade, na prática de esportes e no exercício de atividade culturais como teatro, música, debates e palestras.

A polícia comunitária também pode permitir o entrosamento dos agentes informais do controle social com o setor formal policial, no ambiente onde vivem os destinatários do provimento de segurança.

E, ainda, a criação de Centros Integrados de Cidadania (CICs) na periferia, com a presença do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e das polícias. Assim, não é o povo que vai à Justiça, mas esta que vai até onde está o povo. Os CICs, incrustados em áreas consideradas violentas, serão polos físicos de irradiação de vetores positivos do poder legítimo.

Por fim, é importante readquirir o controle do meio prisional, onde se alimenta a instituição do crime organizado, como resposta à violência dos agentes públicos e à completa omissão na concessão de trabalho ao preso e de mais outras assistências: psicológica, social, jurídica.

Nada melhor para comemorar os 80 anos do que se preocupar com o futuro, com evidente prepotência, sem dúvida, mas que me faz sentir vivo como se tivesse 20.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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