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O acerto de contas de Maluf

Símbolo durante décadas do que há de mais nocivo na política, ‘Dr. Paulo’ finalmente vai devolver parte do dinheiro que tungou; demorou, mas afinal a moralidade prevaleceu

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Por Notas & Informações
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O notório sr. Paulo Salim Maluf conseguiu inculcar em uma parcela expressiva dos cidadãos paulistas a ideia segundo a qual ele seria o arquétipo do político realizador – e isso bastaria para validar sua vida pública aos olhos dos eleitores, malgrado os meios manifestamente desonestos pelos quais se deram muitas dessas realizações. “Foi o Maluf que fez”, bordão adotado pelo ex-deputado federal, ex-governador de São Paulo e ex-prefeito da capital paulista em algumas de suas campanhas, é a síntese do processo de construção dessa imagem de imparável tocador de obras.

De fato, a fama do “político engenheiro” tem um pé na realidade. Não foi à toa, contudo, que seu nome deu origem a um verbo – “malufar” – que servia para designar roubalheira. Em seus governos, tanto os biônicos, durante a ditadura militar, como os eletivos, já sob o regime democrático, raras foram as obras, do fechamento de um buraco no asfalto à construção de uma grande rodovia ou túnel, que passaram incólumes aos malufadores. Essa notoriedade, contudo, foi insuficiente para que o “Dr. Paulo” enfrentasse tempestivamente a consequência jurídica de seus atos, embora processado por todos os lados. Ao longo de décadas, sua defesa foi tão competente na arte da chicana quanto competentes foram os que montaram os complexos e sofisticados esquemas malufistas de ocultação da dinheirama desviada dos cofres públicos.

De acordo com os cálculos dos promotores Silvio Marques, José Carlos Blat e Karyna Mori, do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), apenas da Prefeitura de São Paulo, entre 1993 e 1996, Maluf desviou cerca de US$ 300 milhões (R$ 1,54 bilhão) por meio de fraudes em licitações de obras e execução de contratos com empreiteiras. Há poucos dias, uma decisão da Justiça paulista determinou que uma pequena parte desse montante desviado, cerca de US$ 44 milhões (R$ 226 milhões), seja devolvida a seu lugar de direito: o erário municipal.

Esse dinheiro, que em breve poderá ser usado para atender às necessidades dos paulistanos, representa o que Maluf desviou para si durante a execução de duas obras: a construção da Avenida Jornalista Roberto Marinho e a do Túnel Ayrton Senna. Por esses desvios, o ex-prefeito já havia sido condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 7 anos e 9 meses de prisão em regime fechado – e mesmo assim apenas em 2017. Atualmente, Maluf cumpre a pena em regime domiciliar.

A decisão da juíza Celina Kiyomi Toyoshima, da 4.ª Vara de Fazenda Pública, que homologou o acordo de ressarcimento firmado entre o MP-SP e as empresas ligadas a Maluf, encerrando uma etapa da batalha judicial entre o Estado e um de seus maiores saqueadores, deve ser celebrada como o triunfo da Justiça sobre a desfaçatez. De tão ostensivos, os indícios de desvio de recursos públicos durante a execução de obras nas gestões de Maluf em São Paulo chegavam a ser tratados em tom de galhofa pelo ex-prefeito, com profundos desdém pela moralidade pública e desrespeito aos cidadãos. A boa política não é lugar para gente da cepa do sr. Paulo Maluf. A direita que interessa ao País tampouco é essa direita representada por ele, uma direita em tudo antirrepublicana: truculenta, patrimonialista e antidemocrática. Não surpreende que Jair Bolsonaro tenha herdado tantos votos do malufismo em São Paulo durante suas duas campanhas para a Presidência da República.

Por outro lado, a decisão da Justiça paulista vem muitíssimo tarde e encerra apenas um caso de corrupção envolvendo Paulo Maluf – um só – com o devido ressarcimento do dinheiro desviado aos cofres públicos. A própria decisão do STF que o condenou à prisão veio com um atraso que só uma ignóbil combinação de leniência, distorções de nosso sistema recursal e desigualdades no acesso à Justiça dá conta de explicar.

Diante dos muitos processos que correm inconclusos há anos, alguns há décadas, contra Maluf na Justiça, em alguns dos quais o ex-governador e ex-prefeito já foi condenado em primeira e segunda instâncias, mas ainda recorre, pode-se dizer que sua vida de malfeitos compensou. Mas não se pode ignorar o aspecto simbólico da decisão mais recente da Justiça: restabelecer que a moralidade é o padrão na política, não a sem-vergonhice.