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O choque de Milei

Novo presidente da Argentina submete a população e os setores produtivos a remédio amargo para estabilizar a economia, mas sucesso depende de traquejo político que ele não demonstrou

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Por Notas & Informações
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O anarcocapitalista Javier Milei, presidente da Argentina, entregou a seus eleitores a promessa de campanha de passar a “motosserra” nos gastos públicos. Dez medidas ousadas foram anunciadas na noite de 12 de dezembro pelo ministro da Economia, Luis Caputo, com o objetivo de zerar o déficit das contas públicas já no fim de 2024 e estancar a escalada para a hiperinflação. Outras mais virão nos próximos dias para completar o programa de estabilização, sem que se possa prever seu êxito ou fracasso. A maior incógnita, porém, não está na seara econômica.

Não há quem saiba neste momento se Milei estará disposto a entrar no jogo político do Congresso para negociar suas propostas e, ainda mais preocupante, se seguirá as premissas do Estado Democrático de Direito. Só o tempo dirá se o descabelado, controverso e intempestivo Milei da campanha eleitoral será um governante democrático. A cerimônia de posse, cheia de sinais antidemocráticos, como o desrespeito ao decoro e o limite ao trabalho da imprensa, não autoriza otimismo.

Luis Caputo teve todo o cuidado de sublinhar aos argentinos que tudo vai piorar nos próximos meses, como já fizera o próprio Milei em seu discurso de posse, no último dia 10. Um plano econômico centrado na desvalorização cambial de 54%, no corte dos subsídios à energia e ao transporte, na paralisação de obras públicas, na dispensa de funcionários da máquina estatal, na suspensão de transferências de recursos para as Províncias e no aumento da carga tributária sobre exportadores e importadores jamais traria melhores dias em qualquer país. Muito menos em uma economia já condenada à recessão neste e no próximo ano e com reservas internacionais negativas.

A fúria com que os preços foram remarcados pelo comércio nos dias anteriores ao anúncio do Plano Caputo antecipou o duro cenário a que todos os argentinos, favoráveis ou contrários a Milei, estarão submetidos. A inflação, o desemprego e a pobreza vão escalar por um período ainda não conhecido até que comecem a declinar – se as medidas surtirem o efeito esperado. Mas expor essa verdade incômoda, em vez de uma mentira confortável, não isenta o governo de enfrentar protestos tão ruidosos como os do fim de 2001, que forçaram o liberal Fernando de la Rúa a renunciar e a deixar a Casa Rosada num helicóptero para evitar a massa enfurecida. Como Milei lidará com sua provável impopularidade e com os piqueteiros é outra incógnita.

A raiz do programa da nova gestão está no diagnóstico de que os governos argentinos, nos últimos 123 anos, jamais se preocuparam com o déficit fiscal e o endividamento público. “Somos viciados em déficit”, afirmou Caputo. Há boa dose de razão nesse conceito, como prova o histórico de crises no país desde, pelo menos, a redemocratização. O descontrole dos gastos, quase sempre financiados pela emissão de pesos sem lastro pelo Banco Central, condenou o país a registrar déficit nas contas públicas em 113 anos, a mergulhar em nove calotes da dívida e a enfrentar um longo período de hiperinflação – algo que nenhum argentino de meia-idade almeja reviver.

O receituário aplicado pela equipe econômica, por sua vez, não se desviou do modelo ultraliberal defendido por Milei. O plano, porém, está longe de emitir sinais positivos ao setor produtivo em curto prazo. Algum alívio deverá vir apenas com o embarque da safra agrícola – agora supertributada – e de possíveis renegociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que aplaudiu as medidas. Como Milei lidará com os empresários e com o FMI? Esta é mais uma incógnita.

O plano de estabilização argentino, tal como foi anunciado, somente sobreviverá se as forças políticas aliadas e de oposição no Congresso, o empresariado e os sindicatos forem ouvidos com respeito pela Casa Rosada. A lógica de Milei para enfrentar o desafio “titânico” de estabilizar a economia do país venceu, legitimamente, as eleições. Mas sua imposição sem diálogo, como se viu até agora, eleva o risco de fracasso e de uma nova catástrofe social. A Argentina pode até suportar mais uma debacle econômica. A via autoritária, porém, não condiz com sua vocação democrática. Se Milei não se inteirou disso, precisa se adaptar rapidamente.