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O dever de regular as redes sociais

Lobby das big techs é parte da vida democrática, mas não pode impedir o Congresso de fazer seu trabalho: o País continua necessitado de uma adequada regulação das redes sociais

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Por Notas & Informações
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O Estadão relatou como o Google e a Meta – dona do Facebook, WhatsApp e Instagram – atuaram junto aos parlamentares para que o Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, o PL das Fake News, fosse retirado da pauta de votação da Câmara. Especialmente intenso durante duas semanas, o lobby das empresas de tecnologia surtiu efeito. Segundo o jornal, ao menos 33 deputados mudaram de posicionamento entre a aprovação do requerimento de urgência do PL 2.630/2020, no dia 19 de abril, e a retirada de pauta, no dia 2 de maio.

A mobilização política promovida pelas big techs em torno ao PL das Fake News despertou controvérsias. Para o presidente da Câmara, Arthur Lira, ela ultrapassou “os limites do contraditório democrático”. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), chegou a estabelecer, por liminar, o que o Google e outras empresas poderiam dizer sobre o projeto de lei, o que representou evidente abuso. No Estado Democrático de Direito, juiz não é árbitro do debate público. Por sua vez, a Polícia Federal abriu investigação para apurar a conduta do Google no caso. Segundo Marcelo Oliveira Lacerda, diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas do Google, a empresa gastou R$ 2 milhões na campanha contra o projeto.

Se há indícios de alguma ilegalidade, é necessário, por óbvio, apurá-los. De toda forma, faz parte do jogo democrático o lobby de empresas, organizações da sociedade civil e grupos de interesse. Da mesma forma, também faz parte da vida legislativa – portanto, não deve ser motivo de escândalo – que um projeto de lei seja retirado de pauta, em razão de algum tipo de pressão. E o mesmo se deve dizer da mudança de posicionamento de parlamentares em relação ao PL 2.630/2020. É assim que o regime democrático funciona.

Mais do que uma deficiência em si, os efeitos do lobby das big techs sobre a tramitação do PL das Fake News revelam um Congresso permeável às influências da sociedade civil, o que, a princípio, é positivo. O Legislativo não pode ser indiferente à sociedade. Outra questão se refere ao modo como essa pressão sobre o Congresso é feita. Certamente não é positivo para o regime democrático que o debate público seja tomado por desinformação, suscitando falsos e desproporcionais medos na população. Nesse caso, em vez de liberdade, haveria manipulação e dominação.

Não existem respostas fáceis para essas tensões. Há, no entanto, alguns princípios fundadores que não podem ser esquecidos. Há liberdade de expressão no País. Um juiz não tem competência para arbitrar o que pode ser dito no debate público. Por outro lado, a convivência social pacífica – o que inclui o exercício das liberdades individuais – demanda um mínimo de regulação jurídica. Demanda a lei.

A própria trajetória da tramitação do PL das Fake News ilustra a necessidade de um marco regulatório adequado para as redes sociais. Não para autorizar que o ministro Alexandre de Moraes faça o que fez – o que é inconstitucional –, mas para proporcionar um ambiente em que os direitos de todos sejam respeitados, sem a prevalência do poder de alguns sobre todos os demais. A ausência de normas jurídicas adequadas impede a devida responsabilização, com a vigência da lei do mais forte.

Em artigo no Estadão (‘Fake news’, censura e anonimato, de 2/6/2023), Afranio Affonso Ferreira Neto advertiu que o cenário atual das redes sociais, sem a devida identificação dos usuários, constitui “a irresponsabilidade do descarado e lucrativo anonimato”, o que contraria a Constituição. “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, diz o art. 5.º, IV.

É necessário retomar a tramitação do projeto de lei sobre a regulação das redes sociais. O lobby faz parte da vida democrática. Mas não faz parte da vida democrática que o Congresso, órgão por excelência da representação popular, fique refém de algum lobby. A retirada de pauta do PL 2.630/2020 não pode significar o abandono do projeto. O País continua carente de um marco adequado. O Congresso tem uma tarefa importante a cumprir.