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O dever de respeitar o Congresso

Não cabe ao STF redigir nova legislação antidrogas. O problema não está na Lei 11.343/2006, e sim no Judiciário punitivista, que resiste a aplicar a lei tal como ela foi aprovada

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Por Notas & Informações
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Há grande confusão a respeito do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do Recurso Extraordinário (RE) 635.659 sobre o porte de drogas para consumo pessoal, confusão essa que parece envolver também ministros da Corte. Sempre, mas especialmente em relação a temas politicamente controvertidos, o STF tem o dever de fazer valer a Constituição – e nada mais do que a Constituição.

Há 17 anos, o Congresso reduziu consideravelmente a pena do crime de porte de drogas para consumo pessoal. Segundo o art. 28 da Lei 11.343/2006, “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: (i) advertência sobre os efeitos das drogas; (ii) prestação de serviços à comunidade; (iii) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.

Ou seja, não é uma eventual decisão do STF no RE 635.659 que fará com que o porte de drogas para consumo pessoal não leve ninguém à cadeia. Isso já foi definido pelo Congresso. No entanto, o Judiciário tem resistido a obedecer à vontade do legislador. Com a redução da pena do porte de drogas em 2006, juízes passaram a condenar como crime de tráfico de entorpecentes o que antes era mero porte de drogas para consumo pessoal. Assim, por força da interpretação distorcida, a Lei 11.343/2006 gerou efeito contrário. Em vez de reduzir a pena do porte de drogas, a lei gerou uma onda de criminalização das drogas, com magistrados ampliando o conceito de tráfico para englobar o que era porte para consumo pessoal.

O problema não é, portanto, o art. 28 da Lei 11.343/2006. Em vez de conduzir ao ativismo judicial – instituindo uma nova regulação para as drogas, sob pretexto de inconstitucionalidade –, o STF tem o dever de proteger a vontade do Legislativo, assegurando a aplicação efetiva da Lei 11.343/2006 por todos os juízes e tribunais do País. Ninguém deve estar na cadeia em razão de porte de drogas para consumo pessoal – e isso não porque alguns ministros assim o querem, mas em razão de uma lei aprovada pelos representantes do povo eleitos pelo voto.

No entanto, a incompreensão sobre o papel do STF parece incluir também alguns ministros da própria Corte. O ministro Alexandre de Moraes utilizou o seu voto para redigir uma nova legislação antidrogas. Por exemplo, propôs um critério de quantidade, e apenas em relação à maconha, para distinguir usuários de traficantes.

Ora, uma vez que não há nada na Constituição diferenciando a maconha de outras substâncias ilícitas – tampouco a Lei 11.343/2006 faz essa distinção –, a proposta de Alexandre de Moraes ultrapassa os limites do cargo. Ao inventar uma nova regulação das drogas, a partir de como acha que ela deveria ser, o ministro do STF atua como se fosse parlamentar. Com razão, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, qualificou como “invasão de competência do Poder Legislativo” eventual decisão do STF que crie um novo regime jurídico, diferente do que foi aprovado pelo Congresso, para as drogas.

Se o STF almeja contribuir para uma atuação do Estado mais racional em relação aos entorpecentes, a primeira condição é respeitar as competências constitucionais, bem como os fatos. Atualmente, o principal problema não tem origem na Lei 11.343/2006, mas na recusa do Judiciário em aplicar a lei. Inconstitucional não é o art. 28, e sim a ampliação do conceito de tráfico de drogas.

Aqui, o dever do Supremo é assegurar respeito à vontade do Legislativo, que desde 2006 excluiu a pena de prisão para o porte de qualquer droga para consumo pessoal. Nessa tarefa, cabe ao Judiciário fixar diretrizes mínimas para que todas as suas instâncias e órgãos apliquem igualmente a lei, sem arbitrariedades punitivistas. Mas esse trabalho requer especial contenção. Ao prover orientação para o Judiciário, o STF não pode substituir, tampouco dar a impressão de que está substituindo, o Congresso, o que seria inconstitucional e politicamente desastroso.