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O paternalismo do STF

Leis imperfeitas devem ser corrigidas pelo Congresso, e não pelo Judiciário. Não é papel do STF alterar leis constitucionais que, por alguma razão, exigem atualização ou retificação

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Por Notas & Informações
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À época de sua aprovação pelo Congresso, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) foi internacionalmente celebrado como uma legislação prudente e equilibrada, que protegia os princípios fundamentais do bom funcionamento da internet: a liberdade de expressão, a privacidade dos usuários e a neutralidade da rede. Tornou-se célebre o apoio do cientista britânico Tim Berners-Lee, criador da rede mundial de computadores (World Wide Web), ao texto da lei brasileira. “Finalmente um projeto de lei reflete como a internet deve ser: uma rede aberta, neutra e descentralizada, em que os usuários são o motor para a colaboração e inovação”, disse Berners-Lee.

Os anos passaram e hoje o art. 19, um dos dispositivos que eram sinônimo de ponderação e equilíbrio, tem sido objeto de intenso debate. Segundo a Lei 12.965/2014, o provedor de aplicações de internet só pode “ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros” se, depois de uma ordem judicial, não tomar as providências devidas. A exceção são as violações da intimidade, com a divulgação de “cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado”. Nesses casos, não há a necessidade de ordem judicial. A empresa é obrigada a retirar o conteúdo publicado após receber a notificação.

Com a experiência de quase uma década de vigência, essa sistemática do art. 19 tem recebido críticas. A previsão de irresponsabilidade das plataformas pelo conteúdo de terceiros – que vinha, como a lei diz, “assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura” – estaria favorecendo a circulação de conteúdos distorcidos, abusivos e mesmo criminosos.

O tema não é fácil. Qualquer estudo sobre a regulação das redes sociais passa por avaliar os efeitos concretos do art. 19, bem como os prós e contras de outros regimes possíveis de responsabilização das plataformas digitais. Cabe ao Congresso, com as necessárias contribuições da sociedade civil, realizar esse debate, estabelecendo o tratamento mais adequado ao tema.

O que não pode ocorrer – constituiria evidente usurpação de competências do Legislativo – é o Judiciário atribuir-se o papel de revisor da legislação, avaliando se ela está adequada, se está produzindo os efeitos esperados ou se existe alguma solução melhor. À Justiça cabe fazer apenas o controle de constitucionalidade das leis, checando sua conformidade com a Constituição.

Tal como foi constitucional durante todos esses anos, o Marco Civil da Internet continua sendo plenamente constitucional. Se hoje a Lei 12.965/2014 pode demandar alguma atualização ou retificação, diante da experiência de seus anos de vigência, isso não a torna inconstitucional, ou seja, não a torna sujeita à análise e a eventuais alterações por parte da Justiça. A avaliação sobre a efetiva necessidade de ajuste da lei e qual deveria ser a nova solução regulatória está no âmbito da política, e não no do Judiciário. Cabe aos representantes eleitos decidir sobre a adequação da legislação às circunstâncias atuais.

Evidente e cristalina, tal realidade tem sido, no entanto, obnubilada por uma compreensão expansiva do controle de constitucionalidade. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) anunciou que realizará audiência pública para discutir as regras do Marco Civil da Internet, em concreto o art. 19. Ora, isso é tarefa do Congresso.

Além de não ser sua competência, o STF não fará outra coisa se entender que a análise da constitucionalidade de uma lei inclui discutir e ponderar sobre sua adequação aos tempos presentes. Legislação desajustada e ultrapassada é o que não falta no País. Mas o Legislativo é quem deve fazer esse trabalho de revisão.

Em toda essa história, há um problema de compreensão não apenas das competências de cada Poder, mas da própria cidadania. O Judiciário assume uma posição paternalista, como se fosse o responsável por prover todas as soluções ao País. Ao invadir a esfera do Legislativo, toma o espaço da política e, consequentemente, da própria sociedade na determinação de seu destino.