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Os mais vulneráveis entre os vulneráveis

A pobreza no Brasil está concentrada nas crianças e, conforme o Banco Mundial, o sistema fiscal é parte do problema. Se o País quiser um futuro melhor, precisa reverter essa lógica

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Por Notas & Informações
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A população brasileira está envelhecendo, e nas próximas gerações começará a encolher. Os cidadãos em idade ativa diminuirão crescentemente e serão cada vez mais sobrecarregados, por exemplo, pela sustentação da Previdência de um contingente de idosos cada vez maior e mais longevo. Se não por mais nada, essa perspectiva econômica deveria motivar o País a promover políticas de incentivo à natalidade. Contudo, não só não há iniciativas substanciais nesse sentido, como o Brasil, que já é um dos países mais desiguais do mundo, concentra sua pobreza nas crianças.

A proporção de cidadãos em vulnerabilidade decresce conforme a idade. Entre os brasileiros com até 14 anos (22% da população), cerca de 10% vivem com até US$ 1,90 por dia e 20% com até US$ 3,20, enquanto entre os idosos (15% da população) esse porcentual é, respectivamente, algo em torno de 2% e 4%. Essa desproporção se reflete em todas as outras dimensões de vulnerabilidade, como alimentação, moradia ou saneamento.

Não se trata de um fenômeno novo no Brasil nem incomum no resto do mundo. O dado novo, levantado pelo Banco Mundial, é que o sistema fiscal brasileiro reduz a pobreza dos mais velhos, mas, ao mesmo tempo, agrava a dos mais novos.

O estudo mostra que as políticas fiscais aliviam a pobreza de um modo geral, reduzindo a pobreza extrema em 5,9 pontos porcentuais e a moderada em 0,6 ponto. Isso porque, ainda que os impostos indiretos tenham um efeito regressivo, aumentando a pobreza em 6,1 pontos porcentuais, esse impacto é amplamente compensado por programas sociais, como as pensões rurais, o Abono Salarial, o Benefício de Prestação Continuada e, sobretudo, o Bolsa Família.

Ocorre que na clivagem por idade há uma inversão. O impacto das políticas fiscais reduz as taxas de pobreza entre os idosos de 37,6% para 14,8%, enquanto entre as crianças ele as amplia de 54,2% para 56,6%. Assim, a presença de um idoso em uma família pobre tende a elevar a renda familiar, enquanto a de uma criança gera o efeito oposto.

Essa iniquidade sistêmica é tanto mais perniciosa quando se considera que o impacto da pobreza sobre as crianças (em processo de desenvolvimento físico e psíquico) é muito maior e mais duradouro (por vezes irremediável) do que entre os adultos. Inversamente, benefícios focalizados em crianças têm um potencial muito maior de reduzir a pobreza. E a literatura científica mostra que, quanto menor a idade em que o investimento é feito, maior é a taxa de retorno. Afinal, é mais fácil compensar as desvantagens de crianças pequenas do que tentar remediar essas desvantagens ao longo dos anos.

Nesse contexto, o aumento substancial do Bolsa Família e a retomada de um adicional para os filhos (R$ 150 até 7 anos e R$ 50 até 18 anos) foram medidas extremamente sadias. Ainda assim, famílias com filhos são desfavorecidas. Enquanto um casal sem filhos recebe R$ 300 por cabeça, um casal com uma criança e um adolescente, por exemplo, recebe R$ 200 por cabeça.

De resto, mesmo um programa de transferência de renda bastante robusto, progressivo e focalizado nos vulneráveis, como o Bolsa Família, pode ser uma condição necessária para promover a emancipação de crianças em alta vulnerabilidade, mas não é suficiente. Como a pobreza não é só monetária, é multidimensional, é preciso combinar transferências de renda com políticas complementares, desenhadas especificamente para os ciclos de vida, como é o caso, atualmente, do Programa Criança Feliz, para a primeira infância.

Priorizar crianças nas políticas sociais não é só um imperativo moral, dada a sua condição de total dependência do mundo adulto, mas econômico: sem investimento em capital humano no presente, não haverá capital material no futuro. Desde um passado imemorial, o Brasil se mostra muito competente em promover desigualdades e muito incompetente em promover o desenvolvimento infantil. Ao fim, são só duas peças da mesma armadilha. Se o Brasil não for capaz de reverter esse círculo vicioso, pode até continuar a se crer o “país do futuro”, mas esse futuro será cada vez mais pobre.