Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Pacote fiscal lanhado

Enquanto aceita ganhar menos do que esperava em processos no Carf, o governo trabalha para aumentar ainda mais os gastos; não é à toa que o mercado projeta inflação mais alta

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
3 min de leitura

O governo fechou acordo com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre o retorno do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Quando houver empate nos julgamentos do conselho, os contribuintes poderão se livrar dos juros e multa sobre dívidas tributárias, desde que aceitem pagar o valor principal do débito e não levem a disputa à Justiça. A negociação não foi exatamente um gesto de boa vontade do governo, mas uma forma de evitar o desmonte de um dos pilares do pacote fiscal anunciado em janeiro pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Câmara e Senado já haviam deixado claro que resistiam a essa medida, e a OAB havia entrado com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubá-la, de forma que a chance de o governo ser derrotado não era desprezível. Embora ainda seja preciso aguardar o Congresso dar aval ao texto acordado, Haddad considerou a negociação positiva, por entender que ela garantiu a volta do voto de qualidade, como ele desejava.

Na posição em que o ministro está, é compreensível que ele tenha de manter um discurso otimista. Haddad, inclusive, reafirmou a estimativa de arrecadação que viria das medidas relacionadas ao Carf, de R$ 50 bilhões. A meta já era considerada fantasiosa antes mesmo do acordo, mas o ponto não é esse. O episódio é mais um, entre muitos, a reforçar o quão irreal é esperar que o governo entregue as contas públicas em um nível um pouco mais equilibrado.

Antes mesmo de tomar posse, a equipe do presidente Lula da Silva contratou um considerável aumento de gastos com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição. Muito além da recomposição da verba de programas sociais, o texto elevou a projeção do déficit primário a R$ 231,55 bilhões. Haddad se disse incomodado com o número e, por isso, imaginava-se que ele atuaria para conter o ímpeto gastador de seus correligionários. Ledo engano. Em pouco mais de 45 dias, o governo sinalizou apoio a novas despesas e disposição de abrir mão de mais receitas.

Já de início, o Executivo desistiu de reonerar os combustíveis. O salário mínimo – piso dos benefícios da Previdência Social e um dos principais dispêndios obrigatórios da União – já teria aumento real de 1,4% e seria elevado a R$ 1.302 a partir de maio, mas agora irá a R$ 1.320. A tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), que não é atualizada desde 2014, será reajustada para isentar quem receber até dois salários mínimos em 2024. A justeza das medidas é indiscutível, bem como seus impactos sobre as contas públicas. Por outro lado, até agora, o governo não apresentou a âncora fiscal que pretende adotar no lugar do teto de gastos, tampouco começou a trabalhar pela aprovação de uma reforma tributária que venha a compensar essas perdas.

Lula tem preferido gastar toda a sua verve para atacar a autonomia do Banco Central (BC), o atual nível da taxa básica de juros e a rigidez das metas de inflação. E, ao contrário do que o presidente tem pregado, parte do mercado concorda com suas críticas. Muitos acham que as metas de inflação são inalcançáveis e precisam ser mais realistas. Vários acreditam que o BC errou ao reduzir a Selic a 2% em 2020 e demorou a desfazer esse equívoco. Há quem diga que o governo Bolsonaro legou uma involução ao País em termos de gastos públicos permanentes. E quem diz isso não é a “meninada que fica no computador dando ordem de compra e venda”, como Haddad ironizou em evento do BTG, mas Rogério Xavier e Luis Stuhlberger, gestores de alguns dos fundos de investimentos mais bem-sucedidos do mercado.

Na mesma conferência, Xavier explicou aquilo que, aparentemente, ninguém havia contado ao governo. Não é a eventual mudança nas metas – medida que, aliás, o gestor fez questão de dizer que apoia – que fez com que os investidores voltassem a apostar em uma inflação mais elevada. As incertezas vêm das muitas evidências a confirmar a completa falta de credibilidade da política fiscal do governo. Seria muito bom que Haddad e Lula assimilassem integralmente essa mensagem.