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Para bom entendedor

Ceticismo mencionado pela ata do Comitê de Política Monetária do BC em relação à meta fiscal não surgiu por geração espontânea. Foi plantado e regado pelo presidente da República

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Por Notas & Informações
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A ata da última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) mostrou que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não é o único a pregar a importância de perseguir a meta fiscal. No documento, o BC subiu o tom ao ressaltar que o esmorecimento do esforço por reformas e da disciplina fiscal, o aumento do crédito direcionado e as incertezas sobre a estabilização da dívida pública têm o potencial de elevar a taxa de juros neutra da economia, com impactos deletérios sobre a potência da política monetária e o custo da desinflação.

Indicadores econômicos mais recentes mostraram uma desaceleração da atividade compatível com o esperado pelo Copom. A inflação, eterna fonte de preocupação do BC, tem apresentado um comportamento mais benigno que já alcança os serviços e os núcleos. O desemprego está em um nível historicamente baixo, mas, segundo a autoridade monetária, não tem havido pressão salarial elevada nas negociações trabalhistas.

O problema, como sempre, é a política fiscal, e desta vez a ata não aliviou. Em documentos anteriores, o Copom avaliava que as dúvidas diziam respeito ao desenho final do arcabouço; uma vez que o dispositivo foi aprovado, elas passaram a incidir sobre a execução das medidas de receitas e despesas compatíveis com o atingimento das metas. “No período mais recente”, no entanto, “cresceu a incerteza em torno da própria meta estabelecida para o resultado fiscal, o que levou a um aumento do prêmio de risco.”

O ceticismo mencionado pela ata obviamente não surgiu por geração espontânea. Foi plantado e regado pelo presidente da República, Lula da Silva, que resolveu ser sincero e dizer que a meta de déficit zero, prometida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não estava valendo mais. Desde então, o presidente tem trabalhado com afinco para desmoralizar toda a articulação política que a aprovação do arcabouço pelo Congresso demandou do governo.

A construção de uma maioria para a aprovação do arcabouço não se deu apenas pelo convencimento de parlamentares sobre a relevância de uma âncora fiscal. Custou cargos na Esplanada dos Ministérios para acomodar integrantes do Centrão e recursos bilionários para o pagamento de emendas. Tais acordos foram essenciais para a melhoria das expectativas dos agentes sobre a economia e deram segurança para o BC iniciar uma trajetória de corte da taxa básica de juros – como, aliás, desejava o próprio Lula.

Ainda que o BC tenha sinalizado a intenção de promover mais dois cortes de 0,5 ponto porcentual nas reuniões marcadas para dezembro e janeiro, o documento consolidou a percepção dos analistas sobre uma taxa terminal mais alta do que o esperado ao fim do ciclo. Apostas de que os juros poderiam chegar a um patamar inferior a 9% ao ano foram descartadas, e alguns analistas já ajustaram suas projeções para uma Selic acima dos 10%.

É uma reação natural e previsível, sobretudo quando as expectativas de inflação seguem desancoradas, como ressaltou o BC. Trazer a inflação à meta não será possível enquanto a política monetária e a política fiscal não remarem na mesma direção.

De nada adianta que Haddad reafirme a disposição em perseguir o déficit zero ou que o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), assegure que o Executivo não enviará ao Legislativo uma mensagem para modificar a meta. Foi o próprio presidente da República quem desqualificou o compromisso fiscal de maneira pública, notória e reiterada.

Ao menosprezar a importância de o País buscar o déficit zero no ano que vem, Lula criou tal ambiente de descrédito quanto à meta que já não é mais necessário mudá-la oficialmente para desconsiderá-la. E é incompreensível que um presidente em seu terceiro mandato ainda não tenha entendido o seu papel.

Até que isso ocorra, se é que algum dia ocorrerá, resta ao BC repetir sua mensagem ad aeternum: “Tendo em conta a importância da execução das metas fiscais já estabelecidas para a ancoragem das expectativas de inflação e, consequentemente, para a condução da política monetária, o Comitê reafirma a importância da firme persecução dessas metas”.