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Precipício argentino

País vive caos provocado por desvalorização, inflação, recessão e resultado das primárias

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Por Notas & Informações
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A Argentina vive a situação mais representativa do derretimento de uma economia: a indefinição de preços. Do valor da moeda nacional ao dos bens da cesta básica, as referências monetárias diluíram-se de vez depois da desvalorização de 18% da cotação oficial do peso anunciada pelo Banco Central no último dia 14. Da produção e importação de insumos aos quiosques de doces e cigarros, passando pelos consumidores, a economia foi abduzida pelo caos. Rumores surgidos no vácuo desse anúncio, há tempos exigido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como correção essencial e inevitável da taxa de câmbio, espraiaram ainda mais instabilidade no país e a incerteza mundo afora sobre a real profundidade do abismo econômico argentino.

O caos completa-se com o cenário de queda de 2,5% no PIB de 2023, de estimativa de taxa de inflação de 120% até dezembro, de volume raso de reservas internacionais e de descumprimento da meta de déficit primário das contas públicas. É certo que governos de diferentes colorações ideológicas contribuíram para paralisar investimentos e desestabilizar a economia nas últimas décadas. A “criatividade” refletiu-se nos calotes da dívida pública, no estatismo, no descumprimento de objetivos traçados e, mais recentemente, nas 16 taxas de câmbio existentes nesse país onde cada espirro desata uma corrida ao dólar. O resultado mais triste desse “esforço” está na presença de 40% dos argentinos na faixa de pobreza.

O país tem sido historicamente um celeiro de fracassos econômicos, seja qual for o grau de populismo de seus governos. O peronista Alberto Fernández não escapou a essa sina. Mas, por sorte, como herdeiro de um acordo de US$ 45 bilhões com o FMI, seu governo foi forçado a reprimir parte dos impulsos demagógicos para receber os recursos do Fundo – o que gerou uma crise política com aliados de Cristina Kirchner. Pode-se imaginar que o quadro seria bem pior sem isso.

Um dos compromissos devidos ao FMI era justamente a correção cambial. A escolha do dia seguinte às eleições primárias foi um erro do Banco Central e do ministro da Economia, Sergio Massa, candidato peronista à Casa Rosada em outubro. Se adotada meses antes, estaria diluída. O impacto da desvalorização abrupta, porém, somou-se ao da vitória nas urnas do deputado de ultradireita, Javier Milei, nas eleições primárias de 13 de agosto. Suas propostas de “dinamitar” o Banco Central, dolarizar a economia, bloquear o comércio com a China e retirar o país do Mercosul tornaram-se motivo de pânico dentro e fora das fronteiras do país.

A desorganização do varejo pela incerteza sobre o valor da própria moeda, exposta em reportagem do Estadão, é péssimo sinal, mas não chega a ser novidade na Argentina. A última vez deu-se no início de 2002, quando a alternativa dos argentinos à falta de dinheiro na praça foi o escambo. A gravidade é maior agora pela proximidade das eleições. O risco de a economia do país cair para andares mais fundos e desconhecidos do precipício está dado. Será preciso rapidez e seriedade para evitá-lo.