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Premiando os Estados perdulários

A título de reconstruir o pacto federativo, governo flexibiliza condições do regime de recuperação fiscal dos Estados endividados e desmoraliza esforço de quem cumpriu a regra do jogo

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Por Notas & Informações
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O governo vai propor ao Congresso mudanças no Regime de Recuperação Fiscal (RRF), programa para Estados em crise financeira. Até então, quem aderia ao plano obtinha alívio para pagar suas dívidas e, em troca, comprometia-se a adotar medidas que resultassem no reequilíbrio das contas públicas no médio e longo prazos.

Atualmente, Rio de Janeiro, Goiás e Rio Grande do Sul fazem parte do regime de recuperação fiscal, enquanto Minas Gerais está em processo de adesão. Para aderir, é preciso comprovar uma situação de grave crise financeira e apresentar um plano de austeridade, que inclui privatização de estatais, suspensão de reajustes salariais e de concursos públicos, redução de benefícios e renúncias fiscais e revisão de privilégios a servidores estaduais, entre outras medidas.

Muitas dessas ações, além de impopulares, dependem de aprovação das Assembleias Legislativas, o que requer habilidade e articulação política dos governadores. Uma vez aceitos no regime, os Estados conseguem reduzir o peso das prestações de suas dívidas e repassar uma parte delas à União.

A nova proposta é parte de uma série de medidas daquilo que foi chamado de “Novo Ciclo de Cooperação Federativa”, anunciado como uma forma de reconstruir o pacto federativo, frontalmente atacado no governo anterior, de Jair Bolsonaro.

Já se sabia que os planos de recuperação fiscal necessariamente seriam revistos. Afinal, as receitas estaduais foram arruinadas quando Bolsonaro praticamente impôs o corte do ICMS sobre combustíveis ao Legislativo. O então presidente tampouco se mobilizou para impedir que o Congresso aprovasse o piso salarial dos enfermeiros sem que houvesse indicação de fontes de receita para custeá-lo.

Com receitas menores e despesas maiores, o cumprimento dos planos de recuperação fiscal, de fato, foi comprometido. Mas, a pretexto de reduzir punições severas que nunca foram efetivamente aplicadas, o governo federal optou por enfraquecer os parcos mecanismos capazes de conduzir os Estados a uma situação de maior equilíbrio fiscal.

Privatizar estatais deixará de ser uma condição obrigatória e passará a ser apenas uma de várias opções – assim como rever privilégios como o adicional por tempo de serviço, há muito extinto pela União. Estados que cumprirem suas metas terão o direito de elevar suas despesas acima da inflação, mas mesmo aqueles que descumprirem os termos do acordo terão a multa reduzida.

Tem razão o governo Lula quando torna a restauração do pacto federativo uma prioridade. Tal meta representa o respeito à Constituição, tantas vezes afrontada pela administração anterior. Mas a forma escolhida para fazê-lo, aliviando as condições de socorro dos endividados, tende a agravar ainda mais as contas dos Estados.

É, também, um desrespeito com os Estados que enfrentaram o desgaste político associado ao necessário esforço fiscal. As mudanças premiam a leniência dos gastadores e a incompetência de quem não consegue construir maioria para rever privilégios inaceitáveis do funcionalismo público – como os triênios e licenças-prêmio que vigoram até hoje em Minas Gerais. Com o novo plano, a pressão para que os governadores revertam medidas já implementadas, até então de caráter obrigatório, será inevitável.

Chama a atenção que as medidas sejam anunciadas em um momento em que o Tesouro reconheceu ter sido incapaz de recuperar, neste ano, um único centavo na execução de garantias de Estados e municípios que deram calote em empréstimos garantidos pela União. Esse “direito” tem sido assegurado a todos aqueles que recorrem ao Judiciário e obtêm decisões liminares, mesmo sem aderir às condições do regime e sem apresentar qualquer contrapartida – casos de Alagoas, Espírito Santo, Maranhão, Pernambuco e Piauí e do município de Taubaté (SP).

Em vez de enfraquecer as contrapartidas que induzam ao reequilíbrio fiscal, o governo deveria reforçá-las. De 2016 a junho deste ano, o Tesouro gastou R$ 58,607 bilhões para honrar empréstimos que não foram pagos por Estados e municípios. A conta, a partir de agora, tem tudo para aumentar ainda mais.