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Quem manda nas prisões

Mais de 70 facções atuam no interior das prisões País afora, como mostra um mapeamento do Ministério da Justiça. Só falta o Estado entregar as chaves do cárcere aos prisioneiros

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Por Notas & Informações
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O Ministério da Justiça e da Segurança Pública identificou que 72 facções criminosas atuam no interior das prisões País afora. Por escandalosa omissão do Estado, membros dessas facções exercem poder de vida e morte sobre outros detentos e servidores públicos que são treinados e armados para vigiá-los. Como se isso não bastasse, usando as prisões como “escritórios do crime”, como se convencionou chamá-las, os presos seguem gerenciando suas atividades delitivas nas ruas como se jamais tivessem sido alcançados pelo braço forte do Estado – que, convém lembrar, é o detentor do monopólio da violência. Uma humilhação para o poder público.

A rigor, o dado novo apresentado por esse mapeamento sigiloso, ao qual o Estadão teve acesso, é o grau de fragmentação das quadrilhas. Do total, 57 delas têm atuação meramente local, enquanto 13 são facções regionais. Outras duas, as mais poderosas, têm presença nacional: o Comando Vermelho (CV), com origem no Rio no fim dos anos 1970, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), criado há mais de 30 anos em Taubaté (SP).

É público e notório que, há muitas décadas, o Estado só tem poder, quando muito, de determinar quem entra e quem sai das celas, e em quais horários. O que acontece no interior das instituições penitenciárias está quase totalmente submetido à dinâmica de poder estabelecida entre as próprias facções – além, é claro, da propensão à corrupção que move alguns agentes de segurança.

Ao ingressar numa prisão brasileira, todo prisioneiro, seja um condenado pela Justiça ou um preso provisório, recebe do Estado um uniforme, um par de chinelos, um kit de higiene pessoal e uma imposição da realidade local para “escolher” a que bando vai pertencer no cárcere. Muitos, naturalmente, já entram no sistema penitenciário como membros de alguma facção criminosa, e são logo segregados em alas reservadas para ela – o que basta, por si só, para atestar a incapacidade do Estado para controlar o que acontece dentro dos presídios, a despeito de a medida ser vista como uma necessidade com vistas ao resguardo da integridade física dos próprios detentos.

Todas as facções criminosas mapeadas pela pasta da Justiça e da Segurança Pública exercem poder dentro dos presídios, mas 21 delas são consideradas de “alto impacto” no dia a dia prisional. “Os presos passam a se autogovernar nos presídios”, disse ao Estadão Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. “O fenômeno das facções e o modelo de negócio do PCC, que até 1990 era mais restrito a Rio e São Paulo, começa a se espalhar pelo Brasil, porque é um modelo bem-sucedido.”

Sucessivas décadas de leniência da administração pública para tornar o sistema penitenciário menos bárbaro e mais humanizado, além de eficiente, resultou nesse “estado de coisas inconstitucional”, como bem o declarou o Supremo Tribunal Federal em outubro do ano passado. É notória a falência do Estado no cumprimento de seu dever inalienável de ressocializar os criminosos que mantém sob custódia. No Brasil, como em outros países civilizados, a pena de restrição da liberdade tem uma dimensão punitiva, mas também se presta, essencialmente, à ressocialização. Afinal, a Constituição veda a imposição das penas de morte, salvo em caso de guerra declarada, e de prisão perpétua (art. 5.º, XLVII, alíneas a e b). Trata-se de cláusula pétrea. De modo que, mais cedo ou mais tarde, os apenados voltarão às ruas. Em que condições, depende fundamentalmente de como o Estado exercerá seu poder de prisão.

Não é preciso conhecimento avançado de teoria política e sociologia para compreender que o Estado detém o monopólio da violência, com poder para cassar a liberdade dos que infringem as leis, por uma concessão dos cidadãos. Para triunfo da civilização sobre a barbárie, os indivíduos abrem mão de certas liberdades para que o Estado proteja a todos dos que se desviam das leis, mantendo a ordem pública e a paz social. Mais bem dito: ao descuidar de suas prisões, o Estado trai a sua razão de existir.