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Uma confusão deplorável

Tarcísio erra ao dizer que câmeras nos uniformes policiais são ineficientes na segurança do cidadão. Além de contrária às evidências, a declaração presume que nem todos são cidadãos

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Por Notas & Informações
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O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, informou, em entrevista à TV Globo, que não pretende investir mais nas câmeras nos uniformes policiais, porque, segundo ele, esses equipamentos não melhoram a “segurança do cidadão”. Em seguida, questionado pelo repórter a respeito da possibilidade de aumento da truculência policial como consequência da falta de câmeras nos uniformes, o que resultaria em insegurança para os cidadãos em geral, o governador disse que “o cidadão” está “mais preocupado” com o roubo de celulares e com sequestro relâmpago, entre outros crimes.

Com essas declarações, o governador paulista faz uma deplorável confusão entre segurança pública e proteção contra o abuso cometido por agentes do Estado em nome da segurança pública. Ora, as câmeras não foram implementadas para melhorar a segurança, tarefa esta que é do policiamento ostensivo e preventivo, feito com base em inteligência e treinamento. O objetivo do programa de câmeras nos uniformes é o de documentar a ação policial para eventual responsabilização dos agentes em caso de violência excessiva, o que tende a inibir as ações truculentas.

Há um outro aspecto, ainda mais perturbador, na resposta do governador. Segundo se depreende de seu discurso, aqueles que padecem nas mãos de policiais violentos são cidadãos de segunda classe, que não fazem jus nem aos direitos assegurados pela Constituição nem aos investimentos do Estado na redução da violência policial.

No exótico trade-off proposto por Tarcísio de Freitas, só haverá recursos para melhorar a segurança dos cidadãos realocando-se o dinheiro hoje destinado ao programa que visa a assegurar que os cidadãos tenham como se defender, na Justiça, de eventuais abusos policiais.

É lógico que governar é fazer escolhas, uma vez que os recursos públicos são finitos, mas é espantosa a naturalidade com que o governador Tarcísio de Freitas, que se apresenta como um gestor técnico, tenha se permitido o raciocínio obscurantista, típico do bolsonarismo, de que o sucesso das ações de segurança pública só será possível com o desinvestimento no programa de câmeras nos uniformes policiais, como se um e outro fossem excludentes.

Esse deveria ser um debate ocioso a esta altura. Por todos os aspectos avaliados, as câmeras nos uniformes policiais representam uma das políticas públicas mais eficientes implementadas nos últimos anos na área de segurança pública. Seus dois grandes objetivos – reduzir o abuso policial e produzir elementos de provas para os inquéritos policiais e os processos penais – têm sido atestados em vários levantamentos. O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu a eficiência dos equipamentos na decisão, proferida no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que obrigou o uso das câmeras pela polícia do Rio de Janeiro.

A mentalidade simplista exposta na fala do governador de São Paulo ajuda a entender por que o Estado tem sido tão pouco eficiente na prevenção e na repressão do crime. O poder público tem reiteradamente se negado a ver o óbvio e a estudar os assuntos, preferindo ações demagógicas e populistas de curto prazo.

Contrária às evidências e à Constituição, a declaração de Tarcísio de Freitas é também incoerente com seu discurso ideológico. Não faz nenhum sentido que um político pretensamente liberal considere um desperdício investir na transparência da atuação estatal. A saudável e civilizada desconfiança que o liberalismo nutre em relação ao poder do Estado também se estende, por óbvio, ao poder da polícia. Não existe Estado virtuoso, em nenhum âmbito, sem transparência e sem controle.

Num país violento como o Brasil, a polícia é imprescindível. Todos os cidadãos, sem exceção, infelizmente precisam cada vez mais dela. E as câmeras nos uniformes são um poderoso e eficaz instrumento para que policiais continuem a ser policiais, atuando como policiais, e não como os justiceiros pelos quais clamam aqueles que se consideram cidadãos de primeira classe.