Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Uma nau dos insensatos em rota de colisão

Inebriada pelo idealismo antimanicomial, a Justiça, cega às advertências das autoridades de saúde mental, está a ponto de despejar nas ruas ou em hospitais comuns uma legião de psicopatas

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Por Notas & Informações
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No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou a desativação dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico onde estão internados doentes mentais que cometeram crimes como homicídio, estupro ou pedofilia, mas foram considerados inimputáveis. Eles passarão a receber “reabilitação psicossocial assistida em meio aberto”. Em hipóteses “absolutamente excepcionais”, poderão ser internados em hospitais do SUS. A desativação, que deveria ser consumada até maio deste ano, acaba de ser postergada até agosto. Esse é o mais recente capítulo do movimento antimanicomial. É também o mais temerário.

Ele se insere na dinâmica de “desinstitucionalização” que ganhou tração no Ocidente desde os anos 60 a partir de uma justa indignação com as condições desumanas de parte dos hospícios. Em seu aspecto mais sensível e sensato, ela privilegiou alternativas de tratamento em comunidade e buscou reformas humanizantes nos hospitais psiquiátricos para abrigar casos extremos. Essas estratégias foram facilitadas por novas gerações de psicofármacos que permitiram a estabilização de psicoses graves e, no Brasil, foram regulamentadas pela Lei da Reforma Psiquiátrica de 2001.

Mas aqui os velhos excessos foram reparados com outros piores. Nascida no contexto da ditadura, inspirada por ideólogos da contracultura como Michel Foucault e psiquiatras subversivos como Franco Basaglia, a desinstitucionalização brasileira foi intoxicada pelo romantismo progressista. O movimento se tornou “luta” e recebeu adjetivações como “psiquiatria democrática”. Os mais radicais chegam a negar a existência das doenças mentais: seriam só constructos sociais ou idiossincrasias medicalizadas. Ecoando Foucault, a psiquiatria seria uma ferramenta repressiva do racionalismo burguês para conformar sabe-se lá qual sabedoria “dionisíaca”. Os hospitais psiquiátricos, demonizados por militâncias como o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), ao invés de serem humanizados, foram desmantelados.

Hoje, os leitos psiquiátricos foram reduzidos a 0,04 por mil habitantes, 10 vezes menos que o mínimo recomendado pela OMS e 17 vezes menos que a média da OCDE.

A história dos horrores dos velhos manicômios foi exemplarmente contada por Daniela Arbex em seu livro Holocausto Brasileiro. A história dos horrores dos dementes que, após os excessos do negacionismo antimanicomial, desgraçaram a vida de suas famílias, de inocentes e de si mesmos pela falta de hospitais psiquiátricos está para ser contada. Mas os cidadãos conhecem bem demais o seu capítulo mais degradante: os “holocaustos” em praça pública das cracolândias. Agora, estamos no limiar de conhecer o seu capítulo mais violento.

A propósito da resolução do CNJ, o Conselho Federal de Medicina, a Associação Brasileira de Psiquiatria, a Associação Médica Brasileira, a Federação Nacional dos Médicos e a Federação Médica Brasileira emitiram nota de repúdio, advertindo que os médicos não foram consultados, que os sistemas de saúde não estão preparados para receber essas pessoas e que por isso haverá menos tratamento clínico e mais violência, criminosos insanos nos cárceres e recidivas criminais. Alertando para uma situação “calamitosa e urgente”, as associações pedem que a medida seja revogada. A esse respeito, há ações na Justiça e projetos de lei no Congresso. Mas não estão recebendo a devida atenção das autoridades e da opinião pública.

Alguns dirão que a advertência dos médicos é alarmista. Outros, que é alarmante. Mas é um fato que, quando as principais associações médicas e psiquiátricas dizem que o sistema de saúde não está pronto, é porque o sistema de saúde não está pronto.

Se os juízes decidissem por sua conta e risco, vá lá, mas esses experimentos sociais são feitos por conta e risco do cidadão comum e também dos internos. É preciso buscar um meio-termo que garanta a segurança da população e a dignidade e, se possível, a ressocialização dos delinquentes doentes. Em tese, já há esse meio-termo: ao invés de extinguir os hospitais de custódia, por que não humanizá-los?