A possibilidade de ter uma resposta “precisa” em questão de segundos, fez com que milhares de pessoas se voltassem com muito interesse a um novo mundo de tecnologia, por meio das denominadas “ferramentas” de inteligência artificial (IA), as quais tem se multiplicando com uma velocidade impressionante, surgindo diversos aplicativos ou plataformas, gratuitas e pagas.
Apesar de parecer recente, a Inteligência Artificial já existe há mais de 70 anos.
O termo “Inteligência Artificial” surgiu pela primeira vez em 1955, no título de uma proposta de projeto de verão realizado no Dartmouth College, em Hanover, New Hampshire, Estados Unidos. A definição visou insituí-la como a ciência e engenharia de fazer máquinas inteligentes, com a finalidade de denominar a área em que seus pesquisadores trabalhavam. O projeto pleiteava recursos para custear uma reunião de pesquisadores que trabalhavam em temas visando discutir o que estava sendo feito e o que poderia ser feito no futuro.[1]
Aprovado o seu custeio, o projeto foi realizado no verão de 1956, com a reunião de 11 pesquisadores. A partir daí, o tema sofreu altas e baixas durante os anos, principalmente nas décadas de 80 e 90, com novas pesquisas e levantamentos acerca de sua aplicação ética e de transparência.
Nas últimas décadas, grandes empresas como GOOGLE e AMAZON, já se utilizavam dessa tecnologia, criando sistemas próprios e os utilizando, inclusive, em robôs.
Mas e o Brasil???? Como se insere nesse contexto, principalmente com relação às inovações voltadas ao Poder Judiciário?
A primeira e efetiva inserção da tecnologia no Poder Judiciário Brasileiro se deu com a transição dos processos: de papel para o formato eletrônico. Essa mudança impactou consideravelmente a rotina dos profissionais que atuam no sistema de justiça: Juízes de Direito, Serventuários da Justiça, Promotores de Justiças e Advogados, principalmente.
Até então, os processos precisavam ser protocolados presencialmente nos fóruns, o advogado conseguia consultar os autos folheando uma página por vez. Era comum que inúmeras páginas precisassem ser fotocopiadas para a prática do ato processual seguinte[2]. O mesmo procedimento, com pequenas variantes, repetia-se com os demais operadores do direito.
Em 2004, o Poder Judiciário aderiu à estrutura nacional de chaves públicas. Em 2006, a Lei nº 11.419 regulamentou a informatização do processo judicial. Com isso, os tribunais começaram a publicar uma série de normativas para regular o peticionamento eletrônico com certificação digital (ICP-Brasil), como a Resolução nº 417/09 do STF e a Resolução nº 02/07, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Aliás, o STJ foi o primeiro Tribunal do país a erradicar os arquivos em papel.[3]
Com a digitalização, os processos podem ser acessados de qualquer computador ou celular, a qualquer hora, facilitando o trabalho e o manuseio de autos volumosos por partes dos militantes na seara judicial. Aos poucos essa facilidade de acesso passa a ser viável perante algumas repartições dos Poderes Executivo e Legislativo que atuam com questões jurídicas.
Posteriormente, com a influência direta da Pandemia do COVD 19, as audiências passaram a se realizar por videoconferência, permitindo que os profissionais conseguissem cumprir com seus compromissos profissionais à distância e por videoconferência, muitas vezes de sua própria casa.
A relevância no avanço tecnológico traz muitos reflexos positivos, ainda que por algumas vezes, ocorram falhas e dificuldades nos acessos. Ademais, podemos verificar que grandes Tribunais já utilizam a Inteligência Artificial como mecanismo de seleção das causas em julgamento por tipos de demandas, melhorando a produtividade, com redução de tempo de trabalho dos servidores, circunstâncias que resultam em economia orçamentária, além de obter ganhos na celeridade processual prevista constitucionalmente.
Atualmente, o Judiciário brasileiro é destaque no uso de tecnologias sofisticadas, notadamente de IA, com a proposta fundamental de automação de tarefas e otimização dos recursos humanos. A relevância da utilização deste tipo de ferramenta no Brasil é verificável por fatores como o número de processos, o tempo de tramitação e o volume de recursos contra decisões judiciais de diversas instâncias.[4]
A utilização dessas tecnologias, encontra respaldo na Resolução nº 332/20, do Conselho Nacional de Justiça, com total aos Direitos Fundamentais.[5]
Essas “IAs” podem apresentar sugestões de decisões em processos, bem como analisar pleitos de repercussão geral, com resultados fundamentados em doutrina e jurisprudência, em questão de segundos. Entre os pontos negativos podem ser citados a possibilidade de falha na leitura e na interpretação correta dos pressupostos da demanda, bem como na criação artificial de amparo doutrinário e jurisprudencial para suas respostas, conforme já relatado na literatura especializada.
E tamanha é a importância da IA dentro da modernidade tecnológica, que hoje há uma grande e vasta variedade de softwares, aplicativos e programas de Inteligência Artificial, para as mais diversas áreas, como já anotado. Logicamente, a área jurídica, não ficaria de fora. Programas e aplicativos visam facilitar o trabalho, muitas vezes rotineiros dos profissionais. Análises e elaborações de contratos, roteiro de audiências e petições com sugestões/minutas de redação, busca por jurisprudências etc.
Entretanto, o que parece magistral, pode ter aplicações conturbadas dentro do Judiciário brasileiro. Vejamos:
Uma pessoa ingressa judicialmente contra uma empresa telefônica, em decorrência de uma cobrança indevida. O processo terá uma sentença, que poderá ter toda a sua causa analisada e “julgada” pela Inteligência Artificial, visto que geralmente são demandas repetitivas, diante de semelhança de argumentos. Temos aqui, um exemplo de análise pautada na legislação vigente e sem maiores influências externas, com alta probabilidade de acerto na decisão sugerida pela IA.
Em outra hipótese, um pai ingressa judicialmente com um pedido de revisão de guarda e de visitas, visando aumentar seu período de convivência com seus dois filhos menores, sob a alegação de que eles estão crescendo e há interesse do genitor em participar mais ativamente das dinâmicas das vidas deles, com benefícios recíprocos.
Temos dois casos judiciais que poderão ser julgados pela “IA”, com um deles demandando a utilização da “IA” sobre temas do Direito de Família”. Questiona-se: teria essa “inteligência”, a sensibilidade necessária para ser atuante em uma área tão peculiar do direito, como a área de família, por exemplo?
A mencionada Resolução 332/20 do CNJ não possui qualquer previsão de limitação ao uso de “IA” na área de Direito de Família, desde que sejam respeitadas “sua compatibilidade com os Direitos Fundamentais, especialmente aqueles previstos na Constituição ou em tratados que a República do Brasil faça parte” (art. 4º).
É consenso entre militantes no Direito de Família que a aplicação da mediação e da conciliação sempre serão ferramentas eficazes aos litígios que envolvam famílias e seus embates. São processos que por vezes incluem crianças, pessoas vulneráveis, em problemáticas carregadas de sentimentos e, muitas vezes, emocionalmente delicadas.[6]
A especificidade do Direito de Família consiste, sobretudo, no olhar humano e atencioso aos envolvidos nesses conflitos familiares, sejam pelas partes do processo, ou pelos advogados, serventuários da Justiça, magistrados, membros do Ministério Público, dentre outros. Conforme Fernanda Tartuce, “em boa parte das causas familiares, o magistrado opera com princípios de conteúdo indeterminado”, destacando-se aquelas envolvendo partes vulneráveis, como crianças e adolescentes, mulheres em situação de violência, por exemplo.[7]
Uma área tão sensível, com toda a sua especificidade, não poderá se tornar refém de decisões mecanizadas e automatizadas em litígios tão singulares como as existentes dentro do Direito de Família.
Não há consenso, ainda, entre os operadores de direito acerca da utilização da IA nos confrontos judiciais, especificamente, nessa área, tamanha é a peculiaridade das situações e das pessoas envolvidas. E apenas com o passar do tempo e das aplicações efetivas das tecnologias, conseguiremos distinguir, com clareza, o tão quanto positivo pode ser a utilização da mecanismos artificiais em situações que envolvem vínculos afetivos e por vezes, mágoas, sentimentos confusos e toda a atmosfera psicológica que permeiam as muitas situações dentro do direito de família.[8]
O avanço do projeto de regulamentação da inteligência artificial (IA) é um dos destaques do Senado, onde a expectativa é de que o tema avance significativamente até o final do ano.
Essa regulamentação visa estabelecer um marco regulatório que balanceie o fomento à inovação tecnológica com a proteção de direitos e a mitigação de riscos associados ao uso da IA. Se aprovada, essa legislação poderia proporcionar um ambiente regulatório mais seguro e previsível, essencial para a implementação de tecnologias avançadas em áreas sensíveis como como aquelas relativas ao Direito de Família, ao Direito Urbanístico e ao Direito Ambiental.
Estamos claramente diante de um novo panorama de resoluções judiciais, que, especificamente na área de Direito de Família, não poderá ficar refém de algoritmos ou decisões engessadas, pois, diferentemente dos demais ramos do direito, o aspecto humano é sempre (ou quase sempre) o maior anseio de tutela e proteção.
[1] Tecnologia Aplicada à Gestão dos Conflitos no Âmbito do Poder Judiciário Brasileiro. Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (CIAPJ/FGV) , [s. l.], 2021. Disponível https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/relatorio_ia_2fase.pdf . Acesso em: 20 agosto 2024.
[2] BRAGANÇA, Fernanda. Justiça digital: implicações sobre a proteção de dados pessoais, solução on-line de conflitos e desjudicialização. Londrina: Editora Thoth, 2021.
[3] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Uma era digital. Portal STJ. Disponível em <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Institucional/Historia/A-era-digital> Acesso em 22 agosto 2024.
[4] SALOMÃO, Luís Felipe; BRAGA, Renata. O papel do Judiciário na Agenda 2030 da ONU. Conjur, opinião, 9 jul. 2021. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-jul-09/salomao-braga-judiciario-agenda-2030-onu>. Acesso em: 22 agosto de 2024.
[5] A mencionada Resolução diretrizes sobre ética, transparência e governança no uso e produção de inteligência artificial (IA) no Poder Judiciário. O documento define princípios fundamentais para assegurar que o uso da IA respeite direitos fundamentais, promova a segurança jurídica e garanta tratamento igualitário em processos judiciais. A resolução também orienta quanto à necessidade de transparência nas decisões automatizadas e ao controle sobre o desenvolvimento dessas tecnologias
[6] CARDIM, Soraya Gomes (@familia.oabpiracicaba). A inteligência artificial aplicada aos casos de direito de família., 09.mai.2024. Disponível em https://www.instagram.com/p/C6wWUJnuKGm/?img_index=1 . Acesso em 27.ago.2024.
[7] Processo civil no direito de família: teoria e prática. 6. ed. Rio de Janeiro: Método, 2022, p. 3.
[8] CARDIM, Soraya Gomes (@familia.oabpiracicaba). A inteligência artificial aplicada aos casos de direito de família., 09.mai.2024. Disponível em https://www.instagram.com/p/C6wWUJnuKGm/?img_index=1 . Acesso em 27.ago.2024.
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica