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A nova Lei de Abuso de Autoridade será seletiva na escolha de destinatários?

Por Ismar Viana
Atualização:
Ismar Viana. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A Lei n. 13.869/2019, marcadamente conhecida como "Nova Lei de Abuso de Autoridade", entrou em vigor no dia 03 de janeiro deste ano, após recorrentes críticas de agentes públicos das diversas esferas estatais de poder, que a enxergam como instrumento limitador de ação de agentes de controle que atuam diretamente no combate à corrupção, ao crime organizado.

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Pouco menos de dois meses da entrada em vigor do novo Diploma Legislativo, surgem as primeiras obras literárias que se propuseram a conferir interpretação aos dispositivos, algumas delas, inclusive, invocando inconstitucionalidades materiais, quando as condutas tipificadas sinalizam para a possibilidade de alcance de agentes que integram posições de destaque na estrutura estatal, revelando a seletividade crítica dos autores.

Embora tenha a Lei ingressado no ordenamento jurídico com a promessa de garantir a regularidade de atuação das instituições públicas, a eficiência do Estado, cujo alcance resta comprometido em ambientes onde sejam tolerados abusos de poder, seja por excesso, seja por desvio, as primeiras manifestações já dão sinais de desvios na própria interpretação, que podem interferir diretamente no desvio da aplicação dela, agravando o problema, ao invés de contribuir para a solução, ao contrário do que fora almejado pelo legislador.

É que o esforço do legislador para reafirmar quem pode ser sujeito ativo do crime parece não ter sido suficiente, eis que os intérpretes doutrinadores, que, não raras vezes, coincidem com os potenciais destinatários e aplicadores da Lei, têm sido restritivos e seletivos nas exemplificações, como se o artigo 2º alcançasse tão somente agentes de segurança pública, que atuam na repressão aos crimes.

A título de exemplo, o parágrafo único do art. 33 da Lei n. 13.869/2019 tipifica a "conduta de utilizar o cargo público ou função pública para obter privilégio indevido".

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Privilégio, por si só, já é indevido, tendo sido uma atecnia redacional do legislador, ao acrescer o vocábulo indevido como elemento normativo do tipo, eis que privilégio é incompatível com o Estado Democrático de Direito, que não se confunde com prerrogativa, que é conduto para que a lei seja cumprida, e não meio de transgressão dela.

Pois bem. Mesmo diante de toda a tônica de combate à corrupção, de combate ao abuso de prerrogativas funcionais, em situações disfuncionais de abuso de poder, os exemplos trazidos pelos doutrinadores que se anteciparam na interpretação da lei ainda são os mesmos do século passado, no sentido de citar como exemplo de incidência no tipo o policial que se vale do cargo para ingressar em ambientes festivos de natureza privada, a famosa "carteirada", como se apenas esses agentes fossem os potenciais sujeitos ativos do crime.

Isso revela a necessidade de a rota de alcance e sentido do texto do parágrafo único do art. 33 transcender aos limites intelectivos deliberadamente impostos por doutrinadores que se valem de exemplos seletivos, deixando de trazer à baila exemplos de abusos caracterizados pelo uso do cargo ou função pública para a exploração de benefícios de interesses exclusivamente pessoais, seja em forma de vantagens indevidas, configurando os crimes de concussão ou corrução passiva, seja em forma de "privilégios indevidos", configurando abuso de autoridade, como penduricalhos remuneratórios travestidos de indenização, cuja percepção não satisfaz o filtro do interesse público, em manifesta ausência de correlação entre prestação de serviço e contraprestação pecuniária, indiscutivelmente lesivos, portanto, ao patrimônio público, que expõem a dignidade da função pública, a imagem reputacional da Administração Pública, a confiança dos cidadãos no aparato estatal,.

Assim, se o aplicador da lei se distanciar da finalidade dela, desconsiderando a interpretação teleológica como caminho hermenêutico para se chegar ao alcance da regularidade de desempenho nas ações estatais, a "Nova Lei de Abuso" padecerá do mesmo mal de interpretação e aplicação da "Antiga Lei de Abuso", que elegeu como destinatários, como sujeitos ativos dos crimes tão somente os agentes policiais, o que revelará, como dissera Cazuza, que "neste filme como extras todos querem se dar bem".

*Ismar Viana, mestre em Direito. Auditor de Controle Externo. Professor. Advogado. Autor do livro Fundamentos do Processo de Controle Externo

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