Alguns fenômenos que a humanidade hoje enfrenta constituem atestados fidedignos do malefício resultante da falta de educação. Falo em educação como formação integral do caráter, um processo de edificação de consciência crítica, de fazer pensar e capacitar o educando a fazer escolhas. De um lado, considerar educação como "gasto" e não como investimento, de outro o desprestígio da carreira docente, para a qual a juventude não se destina, diante do desapreço devotado ao professor, explicam a tragédia brasileira, cuja gravidade se aprofunda a cada dia.
Não é só isso. Consolida-se a ideia de um "Estado-babá", que tem de prover a todas as necessidades. E se ele é o grande provedor, merece absoluta confiança. O que o líder falou é mais valioso do que a Constituição. O governo é o líder. O titular do mando é o grande profeta. Falou, está falado e não se discute. Suas ordens são muito mais obedecidas do que a velha dicção formal de que "ordem judicial é para ser cumprida, não discutida".
Os desmandos que acontecem nas várias esferas de governo podem apresentar um singular exercício de reflexão. O que explica o fanatismo atroz que torna bizarros certos comportamentos, separa famílias e quebra amizades longevas, numa teimosia que tangencia a insanidade mental? Exatamente essa submissão cega a uma liderança equivocada.
Algo que transparece no livro "A morte é meu ofício", do francês Robert Merle, que lutou na II Grande Guerra e que nesse livro reproduz a memória de Rudolf Lang, responsável pelo campo de concentração de Auschwitz. Filho de um pai religioso e extremamente severo, cumpriu as ordens de Himmler, que o encarregou de operacionalizar a "Solução Final".
Tão embevecido com a oportunidade de obedecer ao chefe, que - em sua consciência, substituiu o jugo paterno - cumpria ordens sem qualquer questionamento. Daí a sua surpresa e indignação ao tomar conhecimento de que Himmler, já em poder dos aliados, pratica suicídio.
Aí, o carrasco mostra o seu inconformismo. Considera "traição" essa fuga à responsabilidade. Acreditava que o chefe, ao terminar o Holocausto, assumisse a condição de ordenador da eliminação de judeus e de humanos que não se enquadrassem no padrão nazista. Em vez disso, o que aconteceu: o chefe escapou à responsabilidade. Fugiu. Por isso, quando no julgamento de Nuremberg o promotor indaga Rudolf se ele estava convencido da necessidade de exterminar os judeus e os diferentes, ele simplesmente responde que não. E quando o membro do Ministério Público pergunta o motivo, a resposta é: "Porque Himmler suicidou-se!".
O que acontecia com Rudolf Lang e o que acontece com tantos outros fanáticos do Brasil de hoje, é que eles sonham com um líder que responda a todas as demandas, tenha solução para todos os problemas, de tal forma que o súdito não precisa se preocupar. Pode abdicar da responsabilidade por tomar decisões. É uma verdadeira abdicação do pensar!
Quando se percebe que o líder tem pés de barro, que não sustenta as suas posições, que tem falhas de caráter, a solidez do mundo artificiosamente construído em sua mente desmorona.
É o que ajuda a explicar condutas surreais, de pessoas que continuam a resistir aos fatos e que lembram os japoneses, à espera de sua pátria, o Japão, ganhar a guerra, muitos anos depois de terminado o conflito que durou de 1939 a 1945. Ou, mais longevamente, dos portugueses que aguardavam a volta de Dom Sebastião, o conhecido "sebastianismo" redivivo em quem alimenta a fantasia de forma tal, que ela passa a constituir uma blindagem contra a verdade.
Ressalvada a vulnerabilidade patológica de muitos indivíduos, o que acontece hoje no Brasil reflete o resultado de se não levar educação a sério. Deixar de edificar consciências livres, críticas, autossuficientes para chegar a conclusões próprias, não impostas, vai desaguar em hordas tangidas por líderes desprovidos de qualquer consistência.
Isso também ajuda a compreender por que a religião fundamentalista consegue impor uma viseira nos olhos de fiéis pouco esclarecidos, igualmente fruto de uma educação que ainda insiste em priorizar a capacidade mnemônica, em detrimento da capacidade de pensar.
Isso corrige-se, porque a verdade se impõe. Pode-se tentar escondê-la, ocultá-la. Mas, assim como a luz do sol, ela atravessa escuridão e penumbra e fará brilhar o que é real e não pode ser objeto de tergiversação. Mas há um preço a pagar. O preço da incompreensão, do estranhamento entre seres que deveriam se respeitar, a despeito de suas diferenças. E será preciso muita coragem para enfrentar a ignorância e o despreparo, que costumam ser cortejadas pela má-fé dos interesses escusos. Mas, no final, o sol da verdade brilhará.
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022
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