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Opinião|Afinal, qual o limite da liberdade de manifestação do pensamento?

convidado

A grande discussão jurídica e política na atualidade é até onde vai a liberdade de expressar o pensamento. Esse direito é absoluto ou possui limites? Pode ser restringido ou impedido, mesmo antes de a pessoa expressar sua opinião, ou a punição é posterior, isto é, depois de realizada a conduta?

São questões simples de serem respondidas e até então a jurisprudência e doutrina eram uníssonas.

De uma para outra, a jurisprudência foi alterada e pessoas, inclusive parlamentares, passaram a ser investigadas e alvos de diversas medidas constritivas, com o bloqueio de bens e de perfis nas redes sociais, e algumas até mesmo presas cautelarmente.

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A nossa Carta Constitucional é muito clara: todos têm o direito constitucional de expressar sua opinião, dentro dos limites da razoabilidade, fazendo-o de forma proporcional, de modo a não incorrer em nenhuma figura típica, como crime de ameaça, contra a honra e incitação ao crime.

O artigo 5º, inciso IV, da Carta Constitucional dispõe: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. É uma norma constitucional, que faz parte das chamadas liberdades públicas, integrante do núcleo intangível da Constituição por ser um dos direitos inerentes à cidadania e à personalidade.

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Como esse direito é de cunho constitucional, sendo na realidade uma regra, ou existe ou não existe, vale ou não vale. Somente uma outra norma constitucional poderia reduzir esse direito, anotando, porém, que, por se tratar de direito fundamental, não pode ser suprimido ou reduzido por emenda constitucional, visto ser cláusula pétrea, núcleo intangível da Constituição Federal (art. 60, § 4º, da CF).

Lembro, ainda, que o direito à livre manifestação do pensamento é o primeiro a ser suprimido ou limitado em países totalitários (censura).

A censura é expressamente vedada pela Constituição Federal em duas passagens: no artigo 5º, inciso XI, da Magna Carta, que dispõe ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, e no § 2º do artigo 220 em que é proibida qualquer espécie de censura de natureza política, ideológica e artística.

Desses dois dispositivos depreende-se que não se faz possível nenhum tipo de censura prévia, típica de países totalitários em que não há liberdade de manifestação e muito menos imprensa livre. Se houve excesso na linguagem e ultrapassou-se o limite entre a liberdade de expressão e a prática de uma infração, inclusive de natureza penal, a punição é posterior. Não é dado a ninguém antever a prática de um ilícito e calar qualquer pessoa, o que caracteriza arbítrio.

Toda autoridade pública ao assumir cargo de relevo perde parcela de sua intimidade, vida privada e do direito à preservação da imagem. Mas nem por isso podem ser ofendidas ou ameaçadas.

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Contudo, deve ser realizado juízo concreto sobre o que é crime ou o exercício do direito de crítica, que muitas vezes é exercido de forma contundente, mas nem por isso deixa de ser crítica.

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Qualquer pessoa ou Instituição, não estando livre disso o STF e chefes de Estado, podem ser criticados, cabendo ao Poder Judiciário realizar juízo de ponderação de valores para chegar à conclusão sobre a natureza jurídica da crítica (exercício de um direito ou crime), observando que medidas desproporcionais devem ser coibidas.

Em uma verdadeira democracia nenhum assunto é proibido ou tabu. Absolutamente tudo pode ser criticado, debatido, contrariado e até mesmo judicializado.

Onde não é possível criticar, debater ou discordar de algo ou alguém são países totalitários em que não há liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, direito previsto em diversos diplomas internacionais e, no Brasil, considerado direito fundamental, sendo, aliás, cláusula pétrea, núcleo intangível da Constituição Federal, que não pode ser alterado nem por emenda constitucional.

Para deixar ainda mais claro o que já é previsto na Carta Constitucional e afastar a tipificação penal da conduta de simplesmente se expressar e dizer o que pensa sobre algo ou alguém, o artigo 359-U, do Código Penal, incluído no direito objetivo pela Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, que trata dos crimes contra o estado democrático de direito e substituiu a Lei de Segurança Nacional, dispõe que: “Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.

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O direito à livre manifestação do pensamento consiste justamente em poder dizer o que pensa sobre algo ou alguém, inclusive poderes constituídos e seus agentes, sem que importe crime (atipicidade formal e material). Esta regra constitucional é fruto de um país democrático e uma lei, que tutela justamente o Estado Democrático de Direito, nunca poderia punir a manifestação do pensamento, que é um dos seus pilares.

Do mesmo modo, não é possível criminalizar as atividades jornalísticas e de comunicação, que também possuem fundamento constitucional. O artigo 5º, inciso XI, da Magna Carta, dispõe ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. No mesmo sentido, o disposto no artigo 220 da Carta Constitucional, que veda qualquer tipo de restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, observadas outras regras constitucionais, que devem conviver harmonicamente sem que haja qualquer tipo de excesso. E complementa o dispositivo seu § 2º, que proíbe qualquer espécie de censura de natureza política, ideológica e artística.

Por fim, reivindicações de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas populares, reuniões, greves ou quaisquer outras formas de manifestações políticas com propósitos sociais, não podem ser consideradas infrações penais. Nunca um direito protegido pela própria Constituição Federal pode ser criminalizado, o que seria paradoxal, ilógico e certamente inconstitucional.

A liberdade de reunião é garantida pela Magna Carta, no seu artigo 5º, inciso XVI, que diz: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

Ou seja, manifestações pacíficas que reivindiquem a observância de direitos e garantias constitucionais com a tomada de providências constitucionalmente previstas, não podem ser consideradas inconstitucionais, mesmo que críticas aos poderes constituídos.

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Destarte, protestar pacificamente, sem armas ou conflitos, com o propósito de observância de direitos e garantias fundamentais ou mesmo de outros princípios e regras constitucionais, que, no modo de ver dos manifestantes estão sendo violados, desde que dentro dos limites da legalidade, não é infração penal e seu exercício deve ser protegido pelo Estado e nunca coibido, por ser uma das formas do exercício da cidadania, que pressupõe a possibilidade de divergência de opiniões.

O dispositivo previsto no artigo 359-U, do Código Penal, deve ser aplicado analogicamente a outros tipos penais que punem os delitos de opinião, como os contra a honra (arts. 138, 139 e 140 do CP) e incitação ao crime (art. 286 do CP), lembrando que, por ser norma penal mais benéfica, retroage e alcança ações penais em curso ou já julgadas.

Por outro lado, como qualquer direito, há um limite para a livre manifestação do pensamento. Não há direitos absolutos, intocáveis. Todos os direitos e garantias constitucionais devem conviver harmonicamente, observados critérios de proporcionalidade. Aquele ditado popular de que seu direito termina quando inicia o meu é verdadeiro. A inviolabilidade da intimidade, privacidade, honra e imagem das pessoas também é direito previsto na Carta Constitucional (art. 5º, X), do mesmo modo que o de proteção da segurança e tranquilidade de toda a sociedade (art. 5º, “caput”). A partir do momento em que o limite da liberdade de expressão legalmente exigido é ultrapassado, adequando-se a conduta a um tipo penal, haverá delito de opinião a ser punido, nos termos da legislação em vigor.

Todo delito de opinião deve possuir a finalidade criminosa, ou seja, de descumprir a lei de modo que se adeque a uma norma penal incriminadora que a puna, como os crimes contra a honra.

A simples crítica, debate de ideias, insatisfação com alguma coisa, intenção de corrigir ou de se defender, não são condutas típicas penalmente.

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Qualquer crime contra a honra possui o elemento subjetivo do tipo específico de caluniar, de difamar ou de injuriar pessoa determinada, não bastando a mera conduta objetiva que se adeque a um tipo penal.

No que tange ao crime de ameaça, previsto no artigo 147 do Código Penal, a conduta praticada deve ter o potencial de causar medo ou intranquilidade e ser voltada para essa finalidade.

Ameaçar é, portanto, revelar à vítima o propósito de causar-lhe um mal injusto e grave, atual ou futuro. A promessa de mal pode ser da produção de dano ou perigo, pouco importando qual deles seja prenunciado pelo agente.

A ameaça, que pode ser externada por qualquer meio (palavras, gestos ou simbólicos), deve ser injusta e portar potencialidade intimidativa, ou seja, ser séria e idônea à intimidação. Assim, aquele que ameaça colocar um título em protesto ou chamar a polícia, não comete crime, pois a ameaça não é injusta. Da mesma forma, a ameaça feita em tom de brincadeira não é idônea a intimidar o homem médio e não caracterizará o delito.

Destarte, sendo o mal prometido justo ou se não for grave, não haverá o delito por ausência de adequação típica. Já a ameaça sem potencialidade intimidativa, ou seja, que não seja capaz de amedrontar ou trazer intranquilidade à vítima é crime impossível.

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Para a caracterização do delito é indiferente que o agente tivesse a intenção de cumprir o mal prometido ou que lhe fosse possível fazê-lo. É suficiente que possa causar à vítima intranquilidade ou medo.

Porém, o dolo de ameaçar deve estar presente, isto é, faz-se indispensável vontade livre e consciente de causar medo ou intranquilidade à vítima (dolo direto) ou que o autor, ao praticar a conduta, assuma o risco de que isso ocorra e tolere a produção do resultado (dolo eventual).

Outra conduta que pode ser atribuída quando se exerce a manifestação do pensamento é a prevista no artigo 286 do Código Penal, que trata da incitação ao crime, cujo tipo penal dispõe: “Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena. Detenção, de três a seis meses, ou multa”.

Nesta infração, o legislador adiantou-se e tipificou como crime a incitação à prática de qualquer delito, procurando, com isso, evitar que a conduta criminosa fosse perpetrada.

Cuida-se de ação que deve ser praticada em público, de modo a ser percebida por um número indeterminado de pessoas, e visar à prática de crime determinado.

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O agente deve, portanto, por qualquer meio, insuflar, publicamente, pessoas a praticarem determinado crime, como certo roubo, certo estupro, certas lesões corporais etc. Por outro lado, não se exige que o crime incitado tenha vítima individualizada. Assim, não há necessidade de que a incitação seja à prática, por exemplo, de furto na casa de “fulano de tal”. Basta que a incitação seja ao cometimento de determinado furto, mesmo com vítima indeterminada.

No caso de o delito para qual houve a incitação ser praticado, o incitador será partícipe dele, respondendo em concurso material com o do artigo 286 do Código Penal.

Inclusive, a novel legislação incluiu parágrafo único no artigo 286 do Código Penal, que traz dispositivo até então previsto como crime contra a segurança nacional pela Lei nº 7.170/1983 (art. 23), expressamente revogado.

De acordo com o novo dispositivo, será punido com a mesma pena da figura fundamental (art. 286 do CP) aquele que incitar, publicamente, não a um delito qualquer, mas à animosidade entre as Forças Armadas, ou entre estas e os Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), as instituições civis ou a sociedade.

Para que ocorra a adequação típica a incitação deve se dar publicamente, isto é, ser percebida pelos sentidos de um número indeterminado de pessoas e ter potencialidade para alcançar o resultado almejado, que é a animosidade entre as Forças Armadas, ou entre estas e os Poderes da República, as instituições ou a sociedade.

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Anoto, por oportuno, que não haverá este delito quando se pede a intervenção das Forças Armadas para que ela cumpra suas funções previstas na Constituição Federal. O que a lei veda e pune é insuflar as Forças Armadas para que ajam contrariamente ao direito. Seria ilógico e insensato pretender punir aquele que apenas quer que direitos e garantias constitucionais sejam observados.

Com efeito, pedir intervenção federal, decretação de estado de defesa, de sítio, impeachment de autoridades, aplicação do art. 142 da Carta Magna (que na realidade traz apenas as funções das Forças Armadas), não se amolda ao tipo penal de crime, visto serem pedidos perfeitamente possíveis, já que previstos na Constituição Federal, malgrado não se fazerem presentes os requisitos necessários para que as medidas sejam adotadas, o que não é de conhecimento comum da população.

Como já dito, o que a norma proíbe e pune são manifestações que incitem as Forças Armadas a adotarem medidas ilegais, não previstas no direito objetivo, como o fechamento do Congresso Nacional ou do Supremo Tribunal Federal, prisão de autoridades de forma arbitrária, golpe de estado e outras condutas ilegais semelhantes.

Note-se que os crimes de opinião, aqueles cometidos por escrito ou palavras, deixaram de ser tipificados na Lei de Segurança Nacional e passaram a ser crimes comuns, descritos no Código Penal, passíveis de transação penal, de competência do Juizado Especial Criminal, com exceção da calúnia agravada, e o mesmo delito ou a difamação, quando cometidos ou divulgados em quaisquer modalidades de redes sociais da rede mundial de computadores (Internet), cuja pena é triplicada.

É fácil perceber que os crimes de opinião possuem penas amenas e, em sua imensa maioria, são de pequeno potencial ofensivo e somente ensejarão a instauração de ação penal se forem praticados em concurso de delitos (soma das penas máximas ultrapassar a dois anos) ou se houver reiteração criminosa.

No que tange aos crimes contra o estado democrático, muito empregados na atualidade, para a adequação típica na maioria dos seus tipos penais, deve ter havido violência à pessoa ou grave ameaça e que a conduta tivesse o potencial de colocar em risco o estado democrático de direito, sendo essa a intenção do agente ao proferir palavras ou escritos, quando se tratar de crime cometido com esse modo de execução. Havendo atos concretos de violência contra pessoa, fica muito mais fácil interpretar a norma, o que não ocorre com a grave ameaça, normalmente cometida por escritos, palavras ou até mesmo por gestos.[1]

Excepcionalmente, a violência contra a coisa poderá constituir grave ameaça, notadamente quando alcança bens públicos de suma importância ou valiosos. É o caso de depredação de prédios públicos vitais para o Estado ou mesmo estações ou torres de distribuição de energia.

De qualquer sorte, para tais espécies de crimes, nos dois mais empregados (arts. 359-L e 359-M, do CP), de suma gravidade, deve estar presente o dolo de atentar contra o estado democrático de direito, seja para aboli-lo, mediante o impedimento ou a restrição do exercício de um dos Poderes da República, ou para depor o governo legitimamente constituído.

Portanto, meras bravatas ou simples ameaças, destemperos emocionais, patacoadas ou desabafos, que não tenham o condão de colocar em perigo a ordem constitucional vigente, podem até configurar crime contra a honra e ameaça, mas não contra o Estado Democrático de Direito.

Enfim, não se deve confundir o exercício de direito protegido constitucionalmente com a prática de crime, que o transborda e se adequa perfeitamente a uma norma penal incriminadora, anotando que a dúvida sempre se resolve em favor do acusado.

[1] Acerca destes crimes, de forma mais aprofundada, escrevi artigo para a Jusbrasil, com o título “Afinal, o que são os tais crimes contra o Estado democrático de Direito?” (https://www.jusbrasil.com.br/artigos/afinal-o-que-sao-os-tais-crimes-contra-o-estado-democratico-tao-citados-e-aplicados-na-atualidade/1739131140).

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César Dario Mariano da Silvasaiba mais

César Dario Mariano da Silva
Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Editora Juruá. Foto: Arquivo pessoal
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