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Opinião|Caminha e o mapa do tesouro

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Atualização:
Clayton Romano. Foto: Inac/Divulgação

Em Sobre o autoritarismo brasileiro (Companhia das Letras, 2019), Lilia Moritz Schwarcz compreende a formação histórica do Brasil a partir de temas caros ao autoritarismo visto nas relações sociais estabelecidas em cada época e ainda de forte impacto no presente. Escravidão e Racismo. Mandonismo. Patrimonialismo. Desigualdade Social. Violência. Raça e Gênero. Intolerância. E Corrupção, capítulo com maior número de páginas.

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Talvez não por coincidência ou acaso, afinal, vemos lastro de corrupção desde a carta de Pero Vaz de Caminha. Lembra Schwarcz que, no "final da missiva, considerada o primeiro documento escrito sobre o Brasil, o escrivão aproveita a oportunidade e roga ao rei português, d. Manuel I, que dê uma mão para seu genro", documentando assim "o uso de vantagens privadas a partir de entrada privilegiada no espaço público" (p. 90-91). Não só.

Ao narrar a chegada portuguesa nestas terras, o registro de Caminha (1500) expôs os termos mais sinceros da ética mercadora, fundada sob a moral cristã, a guiar aqueles homens (e sucessores). Diante de "pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas", ofertaram "barrete vermelho", "carapuça de linho", "sombreiro preto", "pão e peixe cozido, confeitos, farteis, mel e figos", e "vinho em uma taça". Visavam troca.

Pequena porção de terra situada no extremo ocidente europeu, Portugal é o estado-nação mais antigo da Europa. Continuamente povoado por celtas, galaicos, lusitanos, germânicos, suevos, visigodos, permaneceu sob domínio mouro entre os séculos VIII e XII, integrado aos reinos de Galiza e Leão, com a reconquista cristã, até 1139. O Reino de Portugal fez-se independente em 1143, dispondo de fronteiras estáveis a partir 1249, que seguem em vigor.

A precocidade na instituição de seu estado-nação, em nítido contraste com congêneres europeus (vide Inglaterra, 1640-88/89; França, 1789-92; Itália, 1861-1929; ou Alemanha, 1866-1990), ajuda a entender como Portugal, pequeno e à margem, tenha exercido notório protagonismo durante o mercantilismo. Naus repletas de degredados (entre eles o genro de Caminha) zarpavam em busca de novos mercados e mercadorias, vitais à riqueza do reino.

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Mercava-se de tudo. Especiarias, iguarias, pessoas. O feito de Cristóvão Colombo (1492) aguçou a caça ao tesouro naquela continental porção de terra, situada entre o extremo ocidente europeu e o extremo oriente asiático, ainda livre de presença europeia. Ouro e prata eram os alvos. Quando Pedro Alvares Cabral ancorou diante da, por ele chamada, "Terra de Vera Cruz", inaugurou o domínio militar nestas terras agindo como mercador.

Força bélica deu lugar, naquele momento, à astúcia. Levados à nau, aqueles "pardos, todos nus", "foram recebidos com muito prazer e festa", escreveu Caminha. "O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço". Eis que "um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro".

"Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata". E mais adiante, "viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo".

"Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos". Límpida, a síntese de Caminha traduz os marcos da ética mercadora de então, vislumbrando ouro e prata em tudo e todos, embrenhada matas e rios adentro desta "Terra de Vera Cruz" nos últimos 523 anos. Certamente metamorfoseando-se com o tempo, o toma lá dá cá patrocinado pela esquadra de Cabral fez-se prática geral da epopeia portuguesa aqui instalada a partir de 1500.

Imenso território tomado por pequeno estado-nação, a mercantilização das relações sociais ditou os rumos do domínio português, tornando a política de colonização um grande negócio. De início sem ouro e prata, posteriormente drenados, coube ao pau-brasil converter-se em mercadoria. Diante de "pardos nus" desprovidos de propriedade privada, relação monetária ou mercantil, vieram capitânias (1532), engenhos (1533), escravos (1535).

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Latifúndio agroexportador à base da superexploração do trabalho, hoje responsável por 24% do PIB e milhares de casos de trabalho análogo à escravidão, está na raiz de todas as formas assumidas pelo autoritarismo brasileiro, elencadas por Schwarcz. Escravidão e Racismo. Mandonismo. Patrimonialismo. Desigualdade Social. Violência. Raça e Gênero. Intolerância. E Corrupção, talvez a primeira forma de autoritarismo a aportar no Brasil.

Vantagem privada à custa do que é público, coletivo. Caminha deu o mapa do tesouro.

*Clayton Romano, doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP-Franca). Docente vinculado ao Departamento de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM)

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica

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