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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Descompassos de um ano pandêmico

Por Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade
Atualização:
Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade. FOTO: ARQUIVO PESSOAL  

Uma das grandes lições trazidas pelo ano pandêmico de 2020 é a existência de um descompasso entre discurso e prática em todos os setores da sociedade, do Judiciário dos demais poderes constituídos da República.

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No universo laboral temos o teletrabalho, que veio para ficar. Com regras criadas na Reforma Trabalhista, mas que não conseguiram abranger a dimensão que o home office adquiriu em um ano pandêmico e um novo diploma legal vem sendo gestado nesse sentido. E, se empresas implementaram o trabalho remoto de forma organizada para seus colaboradores, outras tiveram de fazê-lo de forma improvisada pela premência das circunstâncias.

Os impactos da pandemia foram sentidos por todos, mas nem sei que todos tiraram lições desse "novo normal". Com um Judiciário 100% on-line houve ganho de prevenção ao contágio do vírus e comodidade para os operadores do Direito, que passaram a realizar sessões direto de casa; mas também se perdeu a liturgiaprópria do Judiciário, com o uso de termos inadequados durante sessões eletrônicas e descortesias e falta de urbanidades entre as partes.

Muita gente pensa que a liturgia do Judiciário se refere ao exagero de mesura e juridiquês presentes nos primórdios daJustiça brasileira, a partir doséculo XVI. No entanto, a própria palavra etimologicamente quer dizer "serviço público" e isso é o que representa o trabalho realizado pelo Judiciário. E também nesse ponto reside o descompasso. Uma boa parcela de operadores do Direito quer levar para as sessões eletrônicas dos tribunais, a informalidade das "lives" que se tornaram rotineiras na pandemia, abandonando os procedimentos formais de praxe e de estilo. O Judiciário é um espaço onde o rito e a formalidade têm suas funções e devem ser observados até mesmo pela seriedade dos temas tratados quea ele são trazidos.

Esse descompasso também está presente nas relações de trabalho, porque o local de trabalho foi para dentro de casa, causando um descompasso familiar. As fronteiras ficaram tênues e conflituosas em muitos momentos, além de exigir que todos tivessem um aprendizado muito mais rápido e inovador, o que também causa sofrimento e exaustão. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mais de 7 milhões de pessoas ocupadas no Brasil estão em trabalho remoto.

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Em um ano tão difícil, constatamos também descompasso no Legislativo, onde as análises de matérias importantes são adiadas, como as reformas administrativa e política. É o caso da análise de vetos presidenciais sobre matéria relevantes para o país, como  medidas emergenciais e o  Novo Marco do Saneamento,  que não são pautadas pelo Congresso.  Nem mesmo a lei vem sendo respeitada, porquea análise do veto presidencial tem a prerrogativa de trancar as pautas da Câmara e Senado depois de 30 dias de sua apresentação e essa regra não vem sendo respeitada. Ou seja, os cidadãos brasileiros têm sido vítimas dos mandatários de plantão.

Também há descompasso entre o discurso de ampliar a inclusão e a diversidade nas empresas e no Judiciário e a realidade que constatamos é de um distanciamento entre o perfil dos que julgam eo perfil dos que são julgados. Este descompasso étanto mais fortalecido pela falta do passo inicial de criar uma sólida cultura interna de diversidade e inclusão, com novasdiretrizes e programas específicos para grupos subrepresentados, como mulheres, negros, LGBTQIA+ , refugiados, idosos etc. Apenas para citar um exemplo das ausências  desses talentosestá na maior corte do país - o Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo,  possui apenas  0,6% de magistrados que se declaram negros. No levantamento nacional realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, com 11.348 juízes e desembargadores do país, 80,3% dos magistrados se declararam brancos.

Que venha 2021 e que Deus  e a vacina nos protejam.

*Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade é advogada militante, graduada pela USP, com Especialização em Direito Empresarial  pela USP. Foi conselheira OAB-SP por cinco mandatos; membro do IASP, Academia Paulista de Letras Jurídicas, Academia Paulista de Direito do Trabalho e conselheira da AAT-SP. Integra o Conjur (Conselho Superior de Altos Estudos Jurídicos) e o Cort (Conselho de Relações do Trabalho) da Fiesp

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