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Entenda o que está em jogo na ação pautada no STF sobre o julgamento de civis pela Justiça Militar

O Supremo Tribunal Federal (STF) colocou na pauta desta quarta-feira, 27, a competência da Justiça Militar para julgar civis em tempos de paz. O julgamento do tema vai depender do ritmo imprimido nos itens anteriores da lista. O tribunal vinha adiando a análise do caso, antevendo a repercussão na relação com as Forças Armadas, mas na semana passada incluiu a ação para votação no plenário.

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Foto do author Rayssa Motta
Atualização:

A discussão foi colocada a partir de uma ação proposta ainda em 2013 pelo então procurador-geral da República, Roberto Monteiro Gurgel dos Santos, contra o artigo 9º do Código Penal Militar. O dispositivo diz que cabe à Justiça Militar julgar civis por crimes praticados contra as instituições militares. Entram nesse pacote desde crimes contra patrimônio sob a administração militar até delitos contra funcionários da Justiça Militar ou de Ministérios Militares.

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Ao entrar com a ação, o procurador-geral disse que o dispositivo viola a estado democrático, o princípio do juiz natural e o devido processo legal.

"A Justiça Militar, de regra e por natureza, no Estado democrático e constitucional, destina-se aos militares e não aos civis", escreveu. "Qual o sentido de a Justiça Militar julgar civis em tempos de paz, se o que justifica a jurisdição militar é o respeito à hierarquia e à disciplina, e se o agente de crime militar impróprio é civil, desconhecedor da hierarquia e disciplina?", questionou.

Em junho do ano passado, o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, se manifestou pela primeira vez no processo e mudou o posicionamento da PGR. Ele defendeu que a competência da Justiça Militar da União para julgar civis por crimes militares praticados em tempo de paz é 'excepcional' e, portanto, não viola a Constituição. Na prática, o recuo não afeta o julgamento no STF, mas sinaliza que, em caso de rejeição da arguição, não haverá recurso da Procuradoria para tentar reverter a decisão.

Ao STF, o Comando do Exército disse que a prerrogativa para julgar civis nos casos previstos no Código Penal Militar serve para prevenir e reprimir condutas que atentem contra as Forças Armadas. O Ministério da Defesa, por sua vez, afirmou que, ao propor a ação, a PGR partiu de 'premissas equivocadas'.

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Superior Tribunal Militar foi contra revisão criminal da sentença de Pessôa Anta. Foto: STM / Divulgação

O relator do processo é o ministro Gilmar Mendes, que admitiu como terceiros interessados (amicus curiae) Ministério Público Militar, Defensoria Pública da União e entidades de defesa de direitos humanos, incluindo a Conectas. A ONG fez um levantamento com base em dados reunidos no livro Dano colateral: A intervenção dos militares na segurança pública, da jornalista Natalia Viana, e contabilizou 144 casos de civis julgados pela Justiça Militar desde 2017, a maioria por crimes de desacato e desobediência.

Ao Estadão, o advogado e professor de Direito Gabriel Sampaio, que coordena o Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, afirma que os dados indicam um 'risco para a democracia'. "Reforçar esse valor da hierarquia e disciplina cria também uma situação de violação dos direitos dos civis que reivindicam o controle social sobre as Forças Armadas. Questionar abusos passa também a poder ser considerado crime", explica.

Em 2013, o Conselho Nacional da Justiça (CNJ) montou um grupo de trabalho sobre a atuação da Justiça Militar e abordou a competência para o julgamento de civis. De lá para cá, projetos legislativos no Congresso acabaram alargando essa atribuição, avalia Sampaio. Em 2018, por exemplo, a reforma na Justiça Militar da União pela Lei n° 13.774 transferiu o julgamento de crimes cometidos por civis contra as instituições militares para as mãos dos juízes federais da Justiça Militar, mas manteve a competência do Superior Tribunal Militar para bater o martelo sobre os recursos em segunda instância. A Corte é formada por 15 ministros, a maioria egressa das Forças Armadas.

"Se o Supremo não colocar um freio nisso, nós vamos ter consolidado na nossa institucionalidade um processo cada vez mais autoritário. Estará se afirmando que deve se manter um modelo que não vale em nenhum contexto de democracia sólida, de democracia que superou a teoria do militarismo", defende o advogado.

Leia a entrevista com o advogado Gabriel Sampaio:

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ESTADÃO: Quais são os principais problemas do julgamento de civis pela Justica Militar? Questões como necessidade de familiaridade com as normas de hierarquia e disciplina e falta de imparcialidade nas investigações e julgamentos são os principais pontos que vocês questionam?

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Gabriel Sampaio: Exatamente. O perfil dos casos de civis em julgamento é, em sua maioria, de crimes de desacato e desobediência. Isso é um risco para a democracia, porque reforçar esse valor da hierarquia e disciplina cria também uma situação de violação dos direitos dos civis que reivindicam o controle social sobre as Forças Armadas. Questionar abusos passa também a poder ser considerado crime.

ESTADÃO: O Comando do Exército chegou a dizer que era uma norma para prevenir e reprimir condutas que atentem contra as Forças Armadas. A norma, na sua avaliação, tem esse efeito concreto? 

Gabriel Sampaio: O Superior Tribunal Militar tem esse perfil misto, porque ele precisa incorporar uma visão mais integral das questões para proteger o valor da hierarquia e disciplina no âmbito militar. Eles estão ampliando essa visão para dizer que é importante, para julgar os civis, que haja um perfil de julgador com a visão do conflito jurídico com aquele que vai ter a visão institucional. Isso é a prova do problema que nós estamos vivendo. Forças Armadas precisam de controle democrático, controle civil, acima da hierarquia e disciplina, isso vale para o julgamento de civis. Se algum civil for vítima de um abuso praticado por um militar, nesse contexto que nós estamos vivendo hoje, ele vai ter que resolver o seu conflito em um batalhão.

ESTADÃO: Tem alguma margem na Constituição para uma legislação ordinária, que no caso seria o Código Penal Militar, dispor sobre o tema?

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Gabriel Sampaio: A Constituição legitima a existência da Justica Militar para julgar os crimes militares e eles são definidos em lei. Agora nenhum texto normativo é interpretado fora do seu sistema. A sistemática constitucional impõe limites para as Forças de Segurança e para as Forças Armadas. Então não é admissível que a competência militar se assemelhe à competência da Justiça comum. Por exemplo, a Constituição determina que crimes dolosos contra a vida sejam julgados pelo Tribunal do Júri. Nós estamos em uma situação tão absurda, em parte por esses aumentos de competência da Justiça Militar, que o caso Evaldo Rosa e Luciano Macedo, um crime doloso contra a vida, foi julgado pela Justiça Militar. Veja o nível das violações à interpretação sistemática. Está se criando uma exceção a uma norma absolutamente concreta da Constituição para se ressalvar a competência da Justiça Militar. 

ESTADÃO: Qual o risco da manutenção dessa norma pelo Supremo Tribunal Federal?

Gabriel Sampaio: Além do autoritarismo que a gente vive hoje no governo, a institucionalidade, nesse caso a Justica Militar, também vai corroendo os avanços que nós tivemos com a Constituição de 1988 e com o Direito Internacional. Se o Supremo não colocar um freio nisso, nós vamos ter consolidado na nossa institucionalidade um processo cada vez mais autoritário. Estará se afirmando que deve se manter um modelo que não vale em nenhum contexto de democracia sólida, de democracia que superou a teoria do militarismo.

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