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Epidemia de indocumentados no Brasil

Por Mara Gabrilli
Atualização:
Mara Gabrilli. FOTO: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO Foto: Estadão

Imagine ter que fugir de sua própria casa, ter que arrancar seus filhos da escola, abandonar seu trabalho, abrir mão de sua carreira, largar à força familiares, amigos, vizinhos, sua vida. Agora, se imagine chegando ao novo destino. Você não tem mais o que deixou. Na bagagem, nada que lhe garanta segurança, conforto, abrigo. Seu nome ninguém mais fala. Interagir em seu idioma é quase impossível. Ninguém sabe quem é você e, na maioria das vezes, ninguém cede um minuto para lhe conhecer. Você não existe mais para o sistema de saúde, tampouco para o sistema bancário, econômico ou social. Você não tem mais sua pátria.

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Venezuelana, Yosannis Maolis sabe bem o que é essa realidade. Em 2017, fugiu da sua cidade natal, El Tigre, com o que tinha de mais precioso: os filhos Yorman, sete anos, e Luciano, caçula de cinco anos e que tem paralisia cerebral.

Apesar da família ser considerada parte do grupo de vulnerabilidade e, portanto, com direito a atendimento preferencial, Maolis passou por quase dois anos em abrigos de Boa Vista até ser interiorizada pela Operação Acolhida, uma parceria do Governo Federal com o ACNUR, a agência da ONU para refugiados.

Mãe solteira, ela recebe Bolsa Família e todos os seus filhos têm cartão do SUS. Apesar das dificuldades, sente-se feliz e afirma que a qualidade de vida é melhor aqui. O final feliz, contudo, não é a regra para todos os imigrantes e refugiados que têm buscado novas oportunidades no Brasil.

Desde o início da pandemia, o Governo Federal tem emitido, unilateralmente, atos executivos contrários à nossa progressista Lei de Migração (Lei 13.445/2017) e ao nosso Estatuto do Refugiado (Lei 9.747/1997). O exemplo mais torpe é a Portaria 652 da Casa Civil, que mantém o fechamento de fronteiras e exige a comprovação de entrada regular no país, sem possibilidade de os imigrantes poderem se regularizar em território nacional. Entre outras ilegalidades, a portaria traz a responsabilização penal, a deportação e a repatriação imediatas. Uma afronta aos princípios de não criminalização da migração.

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Quando não conseguem comprovar sua regularização, imigrantes e refugiados são impedidos de prosseguir com seu processo de documentação. Ou seja, essas pessoas são impedidas de abrir conta em banco, de alugar um imóvel, de emitir carteira de trabalho ou de sacar o auxílio emergencial, por exemplo. Abrimos as portas para mais fome e desigualdade social. Acionamos a bomba-relógio para uma crise humanitária nas cidades brasileiras.

Para discutir essa realidade, a Comissão Mista Permanente sobre Migrações Internacionais e Refugiados, da qual sou relatora, organizou um painel virtual para debater o direito de migrar. No encontro, Claudia Carletto, que hoje comanda a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, relatou um cenário crescente de indocumentação de imigrantes na capital paulista.

Para se ter uma ideia, no período de setembro de 2019 a março de 2020, 19% dos atendidos no Centro de Referência e Atendimento ao Imigrante chegaram ao centro da Prefeitura de São Paulo sem documentação. Se compararmos o mesmo período em 2021, essa proporção aumentou para 28%.

Cabe lembrar que São Paulo é lar para 1 a cada 4 imigrantes no Brasil. A cidade é pioneira na construção de uma Política Municipal para a População Imigrante (Lei 16.478/2016), tendo como um de seus princípios a promoção da regularização migratória. No entanto, a realidade na capital não é a do restante do país.

No estado de Roraima há cerca de cinco mil pessoas migrantes indocumentadas. Ao afastar essas famílias dos serviços públicos, o Governo Federal compromete estratégias importantes para as políticas públicas municipais. O enfrentamento à violência de gênero e a vacinação nas cidades, que inclui, naturalmente, os imigrantes e refugiados, são diretamente afetados.

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Infelizmente, temos recebido denúncias de muitos casos de deportações sem o direito à ampla defesa. Não por acaso, muitos imigrantes têm deixado de buscar nossos serviços públicos por receio de serem vistos como criminosos. Dado esse triste panorama, no Senado, lutaremos pela aprovação do PL 2699/2020, que hoje tramita na Câmara dos Deputados e prevê regularização emergencial ampla para as pessoas imigrantes.

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Os impactos graves dos atos unilaterais do Executivo Federal colocam o Brasil em uma rota de retrocessos. Com essa postura, o país contraria diversas garantias que nos rendia o título de uma nação acolhedora e humanitária, com a Lei de Migração, a Lei de Refúgio, além de diversas Convenções Internacionais da ONU das quais o Brasil é signatário, como a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, a Convenção para a Redução da Apatridia e o recente Pacto Global para a Migração. Sem cumprir tais acordos, chancelamos para o mundo que hoje somos um país que caminha para trás.

Subtrair de pessoas o direito à cidadania, além de desumano, nos coloca em um caminho perigoso dentro do cenário internacional. A pandemia e a questão sanitária não podem ser justificativas para impedir a entrada de imigrantes e refugiados. Precisamos fazer jus aos nossos compromissos e trabalhar juntos para combater retrocessos.

Para um governo que flerta com o ufanismo ter portas fechadas é um convite para o crescimento de focos de xenofobia em nosso país. E nação alguma ganha com esse rótulo. Amamos tanto a nossa pátria, mas não valorizamos a do outro? Que exemplo damos ao mundo quando impedimos seres humanos de serem tratados com dignidade?

O Governo Federal, ao impedir a regularização do imigrante e do refugiado, perde a oportunidade de atrair novos mercados, uma tendência das nações de alto fluxo migratório. Além do intercâmbio cultural, que é de um valor imensurável, quem recebe bem tem ganhos econômicos.

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Para o Brasil alcançar esse patamar, o Governo Federal precisa abrir mão desse pensamento tacanho. Ser ufanista não nos traz benefícios, mas ser um Brasil aberto e acolhedor é um aceno para o nosso desenvolvimento como nação de primeiro mundo. Precisamos pensar grande, resgatar o nosso respeito no cenário internacional e ensinar para o nosso povo que não existe pátria amada quando não há respeito e tolerância a todos que recebemos.

*Mara Gabrilli, senadora (PSDB-SP), publicitária, psicóloga, foi secretária da Pessoa com Deficiência da capital paulista, vereadora por São Paulo e deputada federal por dois mandatos

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