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Opinião|Juiz das garantias e a imparcialidade do julgador: que fatores influenciam uma decisão?

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Atualização:
Victor Ferreira Arichiello Foto: Divulgação

Após quase quatro anos de idas e vindas, o Supremo Tribunal Federal julgou, no último dia 24 de agosto, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) relacionadas à aplicação do chamado juiz das garantias, incluído no Código de Processo Penal por força do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019)[i]. Sua aplicabilidade estava suspensa por decisão do Ministro Luiz Fux desde o início de 2020.

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Um dos grandes debates que se amplificaram com a introdução da figura na legislação brasileira foi a questão da imparcialidade do juiz: será que o fato de o magistrado ter contato com os autos do inquérito policial impacta sua sentença? Seria o julgador contaminado pelas evidências produzidas durante a investigação e pela denúncia ofertada pelo Ministério Público?

O fato é que a neutralidade do juiz, seja ela consciente ou inconsciente, é um mito. As decisões judiciais podem ser influenciadas por diversos fatores, sejam eles pré-conceitos, vieses, heurísticas, ou outros elementos internos e externos.

Os vieses são, em resumo, inclinações que os seres humanos têm em relação a diversos assuntos, e podem assumir diversas formas, como a proximidade de uma informação, a tendência a absorver apenas dados benéficos ou que confirmem uma hipótese pré-concebida, e a tendência a se levar em consideração apenas o resultado, e não o processo.

Já as heurísticas são atalhos mentais que levam à substituição inconsciente de um questionamento complexo por um mais simples, permitindo resolver um problema de forma mais rápida, ainda que incorretamente. Um exemplo é a heurística da ancoragem, que faz com que um determinado número ou informação sirva de âncora no momento da tomada de decisão.

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Daniel Kahneman, pesquisador e vencedor do Prêmio Nobel, traz, em sua obra Rápido e Devagar (no original, Thinking, Fast and Slow) a questão dos dois sistemas de pensamento e tomada de decisão. Os seres humanos, em síntese, possuem em si, de forma complementar, o Sistema 1 e o Sistema 2. O primeiro opera automaticamente, de forma rápida, impulsiva e intuitiva, sendo indiferente à qualidade e à quantidade de informações a que tem acesso para agir. Já o Sistema 2 atua de forma devagar, sendo cauteloso e capaz de racionalizar, exigindo, para isso, atenção. Os sistemas são complementares, e o Sistema 2, mais ocupado e preguiçoso, nem sempre consegue controlar os impulsos do Sistema 1.

Como não poderia ser diferente, os juízes estão sujeitos aos efeitos dos dois sistemas e, consequentemente, de vieses e heurísticas.

Em 2007, por exemplo, foi publicada pesquisa de campo com 295 juízes do Tribunal de Circuito da Flórida, nos EUA, que demonstrou a forte influência da intuição sobre os magistrados. Na ocasião, foi aplicado o chamado Teste de Reflexão Cognitiva (CRT na sigla em inglês), em que são feitas três perguntas que induzem ao erro se respondidas sem reflexão. Dos 252 juízes que concluíram o teste, 77 responderam às três perguntas incorretamente, e apenas 37 acertaram todas. O resultado médio, entre 0 e 3, foi de 1,23[ii].

Uma das perguntas é a seguinte: uma bola e um taco custam US$ 1,10, custando o taco US$ 1,00 a mais que a bola. Quanto custa a bola?

A maior parte dos respondentes da pesquisa apontou que a bola custa US$ 0,10, o que está errado. Se assim fosse, o resultado da soma seria US$ 1,20 (US$ 0,10 da bola mais US$ 1,10 do taco). A resposta correta é que a bola custa US$ 0,05 e o taco, US$ 1,05, somando US$ 1,10.

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O artigo baseado na pesquisa aponta ainda que a intuição exerce forte papel também em assuntos legais, de modo que, ainda que possa ser superada, ela está muito presente no cotidiano judicial.

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Uma das maneiras pelas quais isso ocorre é através da ancoragem, heurística que faz com que um determinado valor apresentado sirva de âncora no momento da decisão. Isso vale, por exemplo, na negociação de um imóvel: o primeiro montante apresentado, seja pelo vendedor, seja pelo comprador, acaba sendo mais próximo da soma final negociada.

No judiciário, isso pode ser visto não só em processos cíveis, em que o valor requerido ancora o juiz, como em processos criminais, em que a principal âncora no momento da sentença é a dosimetria da pena requerida pelo Ministério Público.

Um artigo alemão de 2006, por exemplo, compilou quatro estudos exatamente sobre essa questão, indicando que até a soma dos números de dois dados rolados antes de uma decisão pode servir como âncora[iii].

O grande ponto desses estudos foi demonstrar que mesmo juízes experientes e conscientes da irrelevância e aleatoriedade desses números são por eles influenciados: por exemplo, aqueles que foram questionados por um jornalista se a pena seria maior ou menor que um ano aplicaram condenações menores que aqueles perguntados se a pena seria maior ou menor que três anos (a média da condenação pelo primeiro grupo foi de 25,48 meses, do segundo, 33,38 meses).

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Em outras pesquisas, a mesma âncora foi aplicada, mas de formas diferentes: na primeira, a promotoria pedia uma pena de 3 ou 9 meses; na segunda, dois dados viciados eram jogados e a soma deles era 3 ou 9. Nos casos em que a acusação pediu uma pena de 3 meses, a condenação média foi de 4 meses; nos casos em que pediu 9 meses, a média foi de 6,05 meses. Já no caso dos dados, a pena média relacionada à menor soma foi de 5,28 meses, e à maior, 7,81.

Para além de tais questões, fatores externos, como a fome e o cansaço, podem influenciar a decisão dos juízes.

Um estudo realizado em Israel e publicado em 2011 analisou 1.112 decisões judiciais tomadas em 50 diferentes dias ao longo de 10 meses sobre a concessão de liberdade condicional, tendo identificado que quanto mais perto do início dos trabalhos e das refeições, mais chances há de serem favoráveis, declinando gradativamente com o passar do tempo[iv].

No início da sessão, as chances de obtenção do benefício eram de aproximadamente 65%, reduzindo até chegar em 0%. Após a primeira pausa para a refeição, retornavam para cerca de 65%, novamente declinando a quase 0%. Voltavam para por volta de 65% após a segunda pausa, e caiam novamente para 0% ao final da sessão.

Todos esses pontos demonstram que os julgadores estão sujeitos a vieses, heurísticas e a fatores externos que à primeira vista parecem irrelevantes.

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O juiz das garantias veio, em sua concepção originária, como uma forma de garantir, dentro dos limites possíveis, a imparcialidade dos magistrados[v]. O Supremo, contudo, deu um passo atrás: dentre as diversas mudanças, a mais significativa talvez seja a competência para o recebimento da denúncia. Enquanto o Código de Processo Penal diz que é do juiz das garantias, o STF entendeu ser do juiz da instrução.

O fato de o juiz que será o responsável por ouvir as testemunhas, interrogar o acusado, e proferir sentença ter acesso ao inquérito policial o torna enviesado por inúmeras questões. Além das já indicadas, há outro ponto que merece destaque.

O jurista alemão Bernd Schünemann, em artigo traduzido para o português em 2012, aponta que “o conhecimento dos autos do inquérito tendencialmente incriminador leva, sem exceções, o juiz a condenar o acusado[vi]. A afirmação é feita com base em um estudo na Alemanha que indicou que, para o mesmo caso, os 17 juízes que tiveram acesso aos autos do inquérito e presidiram a audiência de instrução proferiram sentença condenatória, enquanto dos 18 juízes que apenas presidiram a audiência de instrução, somente 8 condenaram.

O autor aponta que tal questão está relacionada à chamada Teoria da Dissonância Cognitiva: as pessoas buscam obter relações harmônicas entre seu conhecimento e suas opiniões, sendo necessário, portanto, eliminar potenciais contradições. Disso decorre o que se chama de efeito perseverança e a busca seletiva de informações.

O primeiro, de acordo com Schünemann, “faz com que as informações, previamente consideradas corretas à ratificação da hipótese preconcebida, sejam sistematicamente superestimadas, enquanto as informações dissonantes sejam sistematicamente subavaliadas”.

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Já a busca seletiva de informações faz com que, no caso de processos judiciais, o magistrado busque informações que confirmem sua preconcepção, seja de forma direta, seja refutando argumentos contrários.

Nesse sentido, um fator que não pode ser ignorado é que os juízes, ao proferir a sentença, não podem expressar seus sentimentos sobre os fatos sob julgamento, ainda que eles exerçam considerável influência. E é inegável que permitir que o juiz da instrução receba cópias do inquérito e, mais do que isso, analise e receba a denúncia, em muito piora esse problema: não se buscará adequar os fatos à norma, mas selecionar os fatos e informações que se adequam à convicção prévia, o que é agravado pela impossibilidade de que isso seja manifestamente expresso na sentença.

Mais do que isso, diversos estudos indicam que informações com valências negativas carregam mais peso, recebem mais atenção e, ao que parece, são processadas de forma prioritária pelo cérebro. Citar, por exemplo, primeiro as características negativas de uma pessoa leva a uma avaliação ruim sobre ela, ainda que os pontos positivos venham em maior quantidade e sejam mais relevantes. E não se pode ignorar que uma denúncia criminal, por óbvio, trará informações negativas sobre o acusado, rebatidas pela defesa apenas após a análise inicial pelo magistrado. Ou seja, se o juiz que recebe a denúncia é o mesmo que cuida da instrução, estará ele ainda mais enviesado.

O fato é que não existe imparcialidade. Como pontuou o ex-ministro do Supremo Carlos Alberto Menezes Direito, “a decisão judicial é (...) uma decisão que está subordinada aos sentimentos, emoções, crenças da pessoa humana investida do poder jurisdicional[vii]. É necessário reconhecer que o juiz, assim como qualquer ser humano, está sujeito a fatores que vão além de sua consciência. E, mais do que reconhecer, é importante criar e aprimorar mecanismos que ampliem, dentro do possível, a imparcialidade do julgador, garantindo ainda mais legitimidade à sua posição.

Fundamental, assim, sob a ótica dos estudos comportamentais, em especial sobre tomada de decisões judiciais, que o Supremo Tribunal Federal considere uma possível revisão do seu recente posicionamento, dando ao juiz das garantias os instrumentos necessários para possibilitar a construção de um processo penal menos parcial.

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[i] Supremo Tribunal Federal. Juiz das garantias: STF proclama resultado do julgamento. Disponível em

<https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512814&ori=1>. Acesso em 26/08/2023.

[ii] GUTHRIE, Chris, RACHLINSKI, Jeffrey, WISTRICH, Andrew J. Blinking on the Bench: How Judges Decides Cases. Ithaca: Cornell Law Faculty Publications, Paper 917, 2007. Disponível em

<https://scholarship.law.cornell.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1707&context=facpub>. Acesso em 27/08/2023.

[iii] ENGLICH, Birte, MUSSWEILER, Thomas, STRACK, Fritz. Playing Dice With Criminal Sentences: The Influence of Irrelevant Anchors on Experts’ Judicial Decision Making. Personality and Social Psychology Bulletin, Vol. 32, nº 02, p. 188-200. Washington: Society for Personality and Social Psychology. Disponível em:

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<https://www.researchgate.net/publication/7389517_Playing_Dice_With_Criminal_Sentences_The_Influence_of_Irrelevant_Anchors_on_Experts’_Judicial_Decision_Making>. Acesso em 03/09/2023.

[iv] AVNAIM-PESSO, Liora, DANZIGER, Shai, LEVAV, Jonathan. Extraneous factors in judicial decisions. Proceedings of the National Academy of Sciences, Vol. 108, nº 17. Washington: United States National Academy of Sciences. Disponível em <https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1018033108>. Acesso em 26/08/2023.

[v] Reunião Deliberativa Ordinária do Grupo de Trabalho destinado a analisar e debater as mudanças promovidas na legislação penal e processual penal pelos Projetos de Lei nº 10.372, de 2018, nº 10.373, de 2018, e nº 882, de 2019. Reunião de 19/09/2019. Disponível em

<https://escriba.camara.leg.br/escriba-servicosweb/pdf/57558>. Acesso em 26/08/2023.

[vi] SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e correspondência comportamental. Revista Liberdades, vol. 11, setembro-dezembro de 2012, p. 30-50. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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Disponível em <https://ibccrim.org.br/publicacoes/visualizar-pdf/453/1>. Acesso em 03/09/2023.

[vii] DIREITO, Carlos Alberto Menezes. A decisão judicial. Revista da EMERJ, vol. 03, nº 11, 2000, p. 27. Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em

<https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista11/revista11_24.pdf>. Acesso em 03/09/2023.

*Victor Ferreira Arichiello, advogado do Pimentel e Fonti Advogados, graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-graduando em Neurociência Aplicada ao Direito e Comportamento Humano pela Escola da Magistratura Federal do Paraná (ESMAFE/PR). Possui Curso de Curta Duração em Compliance pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

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