É fato notório que hoje impera no país o compadrio político regado a patrimonialismo e infelizmente há uma busca permanente e sequer disfarçada de perpetuação no poder à base do clientelismo político. As emendas parlamentares são distribuídas sem quaisquer critérios que levem em conta necessidades sociais objetivas, mas apenas os interesses paroquiais eleitoreiros. Matéria investigativa recente apontou que apenas 2% dos recursos destinados obedeciam a algum tipo de critério com elaboração de editais.
Não obstante caiba ao Poder Executivo de forma protagonista a gestão do Orçamento Público, temos assistido nos últimos anos a uma deturpação progressiva do sistema, com o crescimento das chamadas Emendas Parlamentares Orçamentárias que passaram a representar cerca de cinquenta bilhões de reais anuais do orçamento público federal manejados pelo Legislativo sem critérios, sem que prevaleça o interesse público, sem transparência, sem rastreabilidade, sem apontamento da destinação dos recursos.
Nas últimas eleições municipais, dos 100 municípios que mais receberam emendas PIX, houve índice de reeleição da ordem de 93%, o que evidencia de forma pornográfica o total desequilíbrio na competição pelo voto, constatação que se deu no cenário da propositura de ações constitucionais pela Abraji, Psol e pela PGR exigindo a prevalência da Constituição em relação ao tema das emendas parlamentares.
O STF acolheu tais pretensões em decisão monocrática que posteriormente foi corroborada pelo plenário de forma unânime, determinando a rastreabilidade no âmbito das emendas, apontamento prévio do destino das verbas e vedação de destino de verbas para unidade da federação distinta daquela à qual está vinculado o parlamentar, entre outros pontos.
Como reação o Congresso apresentou o PLC 175/24 que se transformou na LC 210/24, que acaba de ser aprovada e sancionada pela Presidência da República na data de ontem. É fácil perceber, entretanto, que o diploma legal pretende avalizar o sistema de orçamento secreto, caracterizado por uma desalentadora perpetuação de mecanismos de gestão orçamentária incompatíveis com os princípios fundamentais da democracia, isonomia, transparência, planejamento, accountability e separação de poderes.
Tal diploma, que deveria estar voltado à disciplina do processo de formulação e execução das emendas parlamentares vai na direção oposta e redundará em efeitos nefastos para o país – e todos os brasileiros, observando-se hoje grande distorção no exercícios dos papéis constitucionais, vez que a gestão do Orçamento Público deveria ser, repito, atribuição originária e protagonista do Poder Executivo.
Tais consequências decorrerão, de forma inevitável: da possibilidade de alterações extemporâneas – e incompatíveis com a unicidade e planejamento racional que devem marcar o orçamento público, por determinação constitucional; da informalidade e ausência de registro deferidas às discussões das emendas nas bancadas e comissões; da dispensa de um detalhamento mínimo dos projetos a serem beneficiados com emendas pix (em total dissonância com as normas do TCU); da ausência de mecanismos de prevenção e combate a conflitos de interesses (tão usual nessas emendas, às quais tem-se imprimido uso marcadamente eleitoreiro).
A Lei 210/24 não exige coerência federativa entre parlamentar autor da emenda e Estado destinatário (salvo emendas de bancadas) não trazendo critérios técnicos para alocação de recursos nem parâmetros para a racional e eficiente distribuição entre os entes federativos, conforme destaca nota do INAC
https://www.naoaceitocorrupcao.org.br/post/nota-p%C3%BAblica-22
De maneira igualmente problemática – e inconstitucional - não contempla critérios de priorização de custeio de obras inacabadas, não exige o desenvolvimento de sistemas de transparência e controle efetivo pelos destinatários das emendas, os quais seguem potencialmente escolhidos a partir de critérios pessoais e não isonômicos. As emendas destinadas à saúde encontram igualmente guarida para dar-se de forma absolutamente desarrazoada, sem justificativa ou análise de necessidade.
Foram desconsideradas, ainda, as orientações da Controladoria Geral da União e ponderações de organizações da sociedade civil, expressas após amplos estudos e debates, sempre pautados por critérios técnico-jurídicos. É notório o quadro de distribuição desigual de recursos através das emendas parlamentares, o que contribui para a agudização de desigualdades regionais, o que igualmente não é enfrentado pela LC 210/24.
O desprezo a tais instituições – e à transparência, à rastreabilidade, à eficiência, à efetividade, à racionalidade e à isonomia esperadas quanto aos gastos públicos revela inadmissível ofensa à cidadania brasileira. Desconsideram-se os princípios constitucionais da moralidade administrativa e da prevalência do interesse público.
A moralidade, lisura e responsabilidade dos gastos públicos não podem ser relativizadas, preteridas ou postergadas – especialmente em função de interesses menores, incompatíveis com as reais demandas, expectativas e necessidades da sociedade brasileira, em detrimento da prevalência do interesse público.
Ao construir esse desalentador cenário, o texto faz letra morta em relação às determinações do Supremo Tribunal Federal, órgão incumbido da guarda da Constituição Federal – e dos valores ali consagrados, em mais uma clara subversão do sistema de freios e contrapesos e à lógica do controle da ação pública, em face do que o STF precisa manter as determinação ali emanadas em prol da sociedade e da preservação dos princípios constitucionais superiores da moralidade administrativa e prevalência do interesse público.
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica