Não é de hoje que conheço e admiro Sérgio Moro. Por anos tive a honra de trabalhar, na posição de advogado criminalista, com o então magistrado. Um julgando, outro defendendo os interesses de seus clientes. Foram várias as audiências e, diferentemente de alguns colegas, sempre elogiei seu trabalho, mesmo não concordando com alguns posicionamentos judiciais por ele tomados e medidas publicamente defendidas, como a prisão após condenação em segunda instância.
Sérgio Moro mudou no país a forma de judiciar, enquanto um processo criminal se arrastava por anos, muitas vezes se perdendo no tempo ou alcançando a prescrição, os processos por ele presididos tinham em curto período de tempo, um começo, meio e fim. Utilizando-se de procedimentos tecnológicos, os autos em sua Vara eram digitalizados, as partes acessavam os autos e juntavam petições on line, as testemunhas e acusados eram ouvidos no juízo da culpa ou por videoconferência, sempre presidida por ele. Decisões eram frequentemente divulgadas aos finais de semana e fora do horário do expediente. Os feitos em sua Vara Criminal, de primeira instância, duravam cerca de um ano, apesar da notável complexidade desses casos, o elevado número de acusados e do tamanho dos autos, com dezenas de apensos e muitas vezes com mais de 10 mil páginas.
Com isto, todo seu conhecimento sobre aquele caso não se perdia no tempo; tinha na memória as provas acusatórias, defensivas, o conteúdo dos depoimentos testemunhais e dos acusados, que chamava pelo nome. Assim, após a deflagração da Operação Lava Jato, inúmeras pessoas foram por ele processadas e condenadas criminalmente, com penas privativas de liberdade, independentemente de idade, classe ou sexo.
Notei que em algumas audiências o magistrado tinha um costume de desenhar em um pedaço de papel enquanto procuradores e advogados realizavam suas perguntas, cheguei erroneamente a imaginar que estivesse ele desatento, quando repentinamente parava de desenhar e intercedia, sempre com perguntas pertinentes. Com ele não tinha procrastinação. O juiz tinha um raciocínio lógico e rápido como poucas vezes tive a honra de presenciar.
Era também, apesar de ser um magistrado duro, muito educado. Trabalhava muito, mas sempre tinha tempo de atender, respeitosamente, o Ministério Público, Delegados, Defensores Públicos e Advogados. Relevante relatar isto, já que, lamentavelmente, ainda temos hoje magistrados que não atendem advogados. Sempre que necessitei fui recebido em seu gabinete para despachar petições. Também decidia rápido pleitos feitos por escrito ou nas próprias audiências. Pude testemunhar seu respeito às testemunhas e aos acusados, dando oportunidade destes falarem suas versões, mesmo que às vezes fossem fantasiosas ou prolixas.
Certa vez consegui revogar no Tribunal Regional Federal uma prisão preventiva decretada pelo magistrado Moro. Tratava-se da primeira revogação de uma prisão sem colaboração premiada decretada por aquele Tribunal no curso da Operação Lava Jato. Após o posicionamento da Corte, cruzei com ele no corredor da Justiça Federal antes de uma audiência, que seria inclusive por ele presidida e tive a honra de ouvir do próprio magistrado um elogio à decisão que acabara de modificar seu posicionamento anterior. Um singelo, mas importante gesto que demonstra seu caráter e respeito aos advogados e a todos que labutam na vida forense.
Seu trabalho e combate à criminalidade ganhou proporções mundiais, foi reconhecido em vários países como um juiz que mudou a forma de judicar, enfrentando e condenando os ricos e poderosos até então inatingíveis.
O resultado de tanto sucesso não poderia ser outro: com a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, em 2018, Moro foi convidado para ser o ministro da Justiça e da Segurança Pública, sendo por isto considerado um dos "superministros" de Estado.
Assim, o então magistrado Sérgio Moro, funcionário público concursado há mais de vinte anos, deixou sua estabilidade funcional na magistratura e, em 2019, passou a exercer o cargo mais importante da justiça nacional, o de ministro da Justiça.
Acostumado na 13a Vara Criminal de Curitiba a ser o protagonista nos processos criminais, decidindo pela absolvição ou pela condenação de acusados, na pasta da Justiça teve que se reinventar. Ali tinha que se relacionar com os Poderes Executivo e Legislativo, além do próprio Judiciário.
Todavia, continuou a trabalhar arduamente para combater a criminalidade e, em pouco mais de um ano, além de ter alcançado a redução de taxas de criminalidade, vinha combatendo as organizações criminosas, com apreensões de mercadorias ilícitas como drogas, armas, além de transferências de chefes de facções criminosas para presídios federais, em parceria com Estados, como o de São Paulo. Apresentou relevantes projetos de Lei ao Congresso, como o Pacote Anticrime, alguns em tramitação, alguns aprovados e outros não, mas independentemente dos resultados tivemos, mesmo que por curto período, um exemplar ministro da Justiça.
Em 29 de novembro de 2018, o então eleito Jair Bolsonaro acordou com o então magistrado Sérgio Moro que este seria o ministro da Justiça e que teria "carta branca" para trabalhar, não sofrendo qualquer interferência na sua atividade ou na nomeação de cargos relacionados a seu ministério. Inclusive, Bolsonaro sempre declarou ter nomeado ministros técnicos, cuja competência sempre prevaleceria sobre uma nomeação política.
Todavia, segundo relato do Moro, no dia 24/4/2020, data em que pediu demissão de seu cargo, ao justificar os motivos de sua repentina saída, narrou conversa com o presidente no dia anterior, onde foi imposto por esse a mudança do diretor-geral da Polícia Federal, diga-se, indicado por Moro e homem de sua confiança. Nesta conversa, Moro não ouviu de Bolsonaro qualquer justificativa plausível para tal mudança. O motivo era a intenção do presidente de ter um diretor-geral de sua confiança e que pudesse obter informações dos relatórios de inteligência da Polícia Federal.
Portanto, Bolsonaro, agindo diversamente do que sempre pregou, exigiu do então ministro Moro que concordasse com a mudança do diretor da PF indicado por ele. Moro, diante da ausência de motivo justificável, não concordou com tal mudança, expondo discordar que indicações políticas devam prevalecer às indicações técnicas, principalmente em cargo tão relevante quanto o comando da Polícia Federal, a maior instituição no combate à criminalidade.
Disse ainda Moro, quando comunicava sua demissão, que seu nome erroneamente constava na exoneração do ex-diretor-geral da Polícia Federal, já que não havia autorizado tal inclusão.
Ao não concordar em transferir seu homem de confiança da Polícia Federal por um Delegado de confiança de Bolsonaro, com propósitos escusos, como homem íntegro que é, mesmo tendo aberto mão de sua estabilidade financeira como magistrado ao aceitar o cargo de ministro, mesmo perdendo seu emprego e seu sustento, não aceitou tal imposição e simplesmente pediu para sair.
Não vou aqui discorrer sobre eventuais crimes de responsabilidade que Bolsonaro pode ter praticado ao expedir ordens contrárias à Constituição ou ameaçar Moro a proceder ilegalmente ou ainda de proceder de modo incompatível à dignidade, decoro e honra do cargo. Deixo este tema para outra escrita.
Todavia o motivo que justificou a elaboração deste artigo foi o requerimento, no mesmo dia da demissão do Moro (24/4/20), do procurador-geral da República, requerendo ao presidente do Supremo Tribunal Federal instauração de inquérito policial para apurar a prática, pelo presidente da República, de falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de justiça e corrupção passiva privilegiada. A surpresa, contudo, foi a inserção do pedido de apuração dos delitos de denunciação caluniosa e possíveis crimes contra a honra, que inegavelmente traz o foco da investigação também para Sérgio Moro.
Entre as condutas praticadas pelo Moro e Bolsonaro, as mais próximas da ilicitude criminal, certamente não são as do ex-ministro.
*Fernando José da Costa, advogado criminalista; mestre e doutor pela Universidade de São Paulo (USP); doutor pela Università degli Studi di Sassari; palestrante do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu da FGV Direito SP (GVlaw); autor de livros jurídicos; foi conselheiro seccional da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB/SP), presidente da Comissão de Direito Criminal e vice-presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/SP
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