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O direito do seguro em 2022

Por Ernesto Tzirulnik e Inaê Siqueira de Oliveira
Atualização:
Ernesto Tzirulnik e Inaê Siqueira de Oliveira. FOTOS: DIVULGAÇÃO  Foto: Estadão

A área de seguro e resseguro foi um laboratório para as teses político-econômicas do governo federal. Proliferaram normas administrativas -- só em 2022, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) publicou 30 Circulares e o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) publicou 16 Resoluções (em 2021, foram 31 Circulares e 33 Resoluções). A experimentação normativa, que persistiu ano após ano, é facilitada pelo distanciamento com que o público acompanha o tema, instrumentalizada pela leitura ampliativa que a Susep e o CNSP fazem dos poderes outorgados pelo Decreto-Lei 73/1966 (arts. 32 e 36, em especial) e reveladora da insuficiência do regime legislativo atual. Lacunoso, deixou espaço a um Executivo que aspira legislar.

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Em 2022, com as modificações das normas sobre seguros de pessoas (Resolução 439 e Circular 667), que se juntam às normas sobre seguros de danos "massificados" (Circular 621/2021) e sobre seguros de danos "de grandes riscos" (Resolução 407/2021), parece ter se completado a reforma às avessas do contrato de seguro, feita pelo Executivo e não pelo Legislativo.

Outros temas também foram objeto de normas administrativas em 2022. Por exemplo, seguro garantia (Circular 662), que tem especial relevância em contratações públicas; seguro habitacional (Resolução 447 e Circular 677), ramo com alta concentração de mercado e baixa sinistralidade; e seguro de garantia estendida (Resolução 436 e Circular 659), outro ramo disfuncional, com baixa sinistralidade, coberturas esvaziadas e vultosas taxas de intermediação.

Também houve reação ao ímpeto reformista do Executivo. A mais notória é a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7074, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores em fevereiro de 2022 contra a Resolução CNSP 407/2021, que modifica o regime contratual aplicável aos seguros "de grandes riscos", com parecer favorável da Procuradoria Geral da República. Relatada pelo ministro Gilmar Mendes, a ADI 7074 aguarda julgamento.

Embora os olhos estejam voltados ao Supremo Tribunal Federal, devido à função central da Resolução CNSP 407/2021, ocorreram desdobramentos importantes para o direito do seguro no Superior Tribunal de Justiça.

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No âmbito da 2ª Seção do STJ, que reúne 3ª e 4ª Turmas, a decisão mais rumorosa foi sobre a taxatividade do rol da ANS (EREsp 1.886.929/SP). Em junho, o STJ decidiu, por maioria, que o rol da Lei 9.656/1998 seria taxativo com exceções ("taxatividade mitigada"). Entretanto, após o julgamento, foi promulgada a Lei 14.454/2022, que obriga ao oferecimento de cobertura para procedimentos não previstos no rol da ANS, desde que exista (i) comprovação da eficácia, "baseada em evidências científicas e plano terapêutico" ou (ii) recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ou de pelo menos um órgão de avaliação de tecnologias de saúde com "renome internacional".

A 2ª Seção também reafirmou, por maioria, o conteúdo da Súmula 620/STJ, segundo a qual "A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida" (REsp 1.999.624/PR).

No âmbito das 3ª e 4ª Turmas, alguns acórdãos do STJ examinaram questões gerais controversas do contrato de seguro, contribuindo para esclarecê-las. Por exemplo, (i) aviso de sinistro não é ato formal, sendo inclusive dispensável quando "pela notoriedade do fato ou quando, pela espécie de seguro, não tenha a seguradora interesse algum em ser avisada imediatamente da ocorrência" (REsp 1.969.653/MS) e (ii) cláusula de exclusão de garantia por embriaguez (do segurado ou de terceiro a quem ele tenha confiado o veículo) não é oponível ao terceiro lesado, devendo prevalecer a "função social da avença" (REsp 1.754.768/DF).

Outros acórdãos do STJ suscitam dúvidas. Por exemplo, a decisão de que a seguradora sub-rogada não se sujeita à cláusula de eleição de foro, prevista no contrato entre segurado e terceiro causador do dano, pois o pagamento com sub-rogação teria eficácia material e não processual (REsp 1.962.113/RJ). Embora não seja o primeiro acórdão do STJ a concluir isso (em 2008, houve o REsp 1.038.607/SP), a decisão reacende uma divisão -- a sub-rogação teria eficácia material, não processual -- que parece oriunda de um mal-entendido.

Na jurisprudência do STJ dos anos 1990, discutia-se a transmissão à seguradora sub-rogada da prerrogativa processual prevista no art. 100, parágrafo único, do CPC/1973 (competência do foro do domicílio do autor, nas ações de reparação de dano sofrido em razão de delito ou acidente de veículos). Embora as ementas daqueles acórdãos se refiram a "questões processuais" de modo genérico e indiquem que a sub-rogação não as abrangia, a razão subjacente era o caráter personalíssimo da competência excepcional do foro do domicílio da vítima, não a sua natureza adjetiva.

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Como o tema tem implicações para a sujeição da seguradora sub-rogada à cláusula arbitral, em relação ao qual a posição dos Tribunais de Justiça se divide (só no TJSP, foram 8 acórdãos entre 2020 e 2022, 4 favoráveis à transmissão; 4 contrários), é possível que o STJ seja, em breve, chamado a se posicionar sobre ele novamente.

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Há, ainda, um acórdão do STJ que sobressai não pelo mérito da fundamentação, mas pelas preocupações que traz à transparência na regulação de sinistro, tema de enorme relevância prática, em relação ao qual o Código Civil é omisso. No mesmo ano em que a IX Jornada de Direito Civil adotou dois enunciados sobre regulação de sinistro (Enunciados 656 e 657), reconhecendo o direito "de acesso aos relatórios e laudos técnicos produzidos na regulação do sinistro", a 4ª Turma do STJ concluiu que a exibição "dos elementos coligidos na regulação de sinistro" implicaria "desequilíbrio concorrencial", por exposição "do modo de apurar da seguradora e de sua parceira reguladora (know how de ambas)" (REsp 1.836.910/SP). A conclusão cria o suposto know how de apuração e lhe confere proteção em detrimento da transparência que interessa aos segurados e beneficiários.

No mercado, para além da situação do IRB, que com frequência ocupou o noticiário, preocupa a situação do seguro rural, responsável por grande volume de prêmios. Segundo dados da Susep, dentre os seguros de danos, apenas o seguro de auto arrecada mais prêmios do que o rural. Com o aumento da sinistralidade, atribuída a eventos climáticos, houve endurecimento nas regulações de sinistro, aumento no custo do seguro (para o segurado) e dificuldade na obtenção de resseguro (para as seguradoras). Pela relevância do seguro rural à economia brasileira, é preciso impedir que haja esvaziamento de coberturas, semelhante ao ocorrido com os seguros de engenharia e operacionais, e escassez de oferta.

Embora sejam esperadas revogações de alguns atos normativos, o passado talvez continue vivo em Resoluções e Circulares, mas o futuro traz a possibilidade de mudança. Para que uns poucos agentes econômicos não tenham facilidade para continuar dobrando a política nacional de seguros e resseguros à sua vontade, o Brasil deveria, à semelhança do que tantos países na América Latina e na Europa já fizeram, promulgar uma lei especial de contrato de seguro. Com essa finalidade o PLC 29/2017 tramita no Senado Federal, depois de 13 anos de amadurecimento na Câmara dos Deputados.

*Ernesto Tzirulnik, doutor em Direito Econômico, presidente do IBDS - Instituto Brasileiro de Direito do Seguro e da Comissão de Direito do Seguro e Resseguro da OAB-SP

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*Inaê Siqueira de Oliveira, mestre em Direito Civil, 1.ª secretária do IBDS - Instituto Brasileiro de Direito do Seguro e 2.ª vice-presidente da Comissão de Direito do Seguro e Resseguro da OAB-SP

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