I. OBSERVAÇÃO PRELIMINAR.
É fato registrado por todos os analistas do sistema político brasileiro que “morreu” o presidencialismo de coalizão e não há possibilidade de “ressuscitá-lo”.
Isto quer dizer que não existe mais um presidencialismo em que a proeminência do Presidente da República na governança seja assegurada por uma coalizão partidária. O dia a dia mostra que as coalizões partidárias, hoje, são fruto de escambos que não prevalecem nas deliberações mais importantes, ainda mais em concorrência com as “frentes” ou “bancadas formadas em torno de interesses concretos e vitais para a comunidade brasileira – o povo.
II. A GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA.
a governança contemporânea reclama, na democracia, uma colaboração entre Poderes Executivo e Legislativo A “separação dos poderes”, peça essencial da democracia moderna e ordenação da governança que deve ser entendida, hoje, como um sistema em que os Poderes políticos, Legislativo e Executivo - este hoje chamado exageradamente de Governo - precisam atuar em sintonia, em colaboração, para cumprir as múltiplas tarefas que exige o Estado “Social”, visando à felicidade do todo o “seu” povo.
Com efeito, outra peça essencial da democracia - e decorrência lógica da “separação” - é o Estado de Direito, segundo o qual a ação governamental deve fazer-se de acordo com a Constituição e a lei que edita o Legislativo. De fato, a liberdade pressupõe, como está no art. 5º, II da Constituição de 1988, que “ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”
Mesmo, a eventual previsão de uma legiferação pelo Executivo – como as Medidas Provisórias não escapa à palavra final do Legislativo, pois, se não forem “convertidas em lei”, perdem “eficácia, desde a edição” (art. 62, § 3º), além de não caberem em determinadas matérias e serem condicionadas a “relevância e urgência” (art. 62, caput).
Os Poderes - eleitos diretamente pelo povo, elemento imprescindível da democracia - são os poderes políticos, pelos quais o povo se governa segundo decorre do art. 1º, parágrafo único da Lei Magna.
Esta atuação é, sem dúvida. fiscalizada por um terceiro Poder – o guardião da Constituição - um poder imparcial, portanto apolítico - o Judiciário – cujo papel obviamente é de defender a Lei Suprema. Para tanto, pode nulificar até a lei, mas “somente” pode fazê-lo “pelo voto da maioria absoluta de seus membros” (art. 97). E certamente não pode substituir o Legislativo, mesmo em caso de omissão (art. 103, § 2º).
Nem deve fazê-lo, porque não tem condições de prescrever políticas para os Poderes políticos, porque são estes que podem avaliar as prioridades e a disponibilidade de meios, inclusive financeiros, para a concretização das metas exigidas pelo povo, por meio de seus representantes eleitos.
A sintonia entre os Poderes políticos evidentemente não é a sujeição de um Poder ao outro, mas atuação consensual e harmônica (o que também é dito pela Constituição brasileira, no art. 2º).
Esta sintonia é espontânea e natural do sistema parlamentar de governo, no qual o Governo é o Conselho de Ministros, que exerce o Poder apenas enquanto goza do apoio da maioria parlamentar. Esta é uma virtude que não significa ausência de inconvenientes e inadequação à cultura de muitos povos.
Ela não o é no presidencialismo.
A formulação jurídica deste, muito próxima da doutrina clássica da separação de poderes, preocupa-se com a prevenção do arbítrio por meio de um sistema de checks and balances. Isto obriga uma conciliação, não raro difícil, entre os dois Poderes políticos, como se vê na atualidade norte-americana.
Por outro lado, no Brasil a visão cultural – não se pode esquecer – vem do positivismo que inspirou a República.
Nela, se magnifica a concepção de um chefe enérgico e eficaz, ou seja, a doutrina positivista da “ditadura republicana” que muito pesou na proclamação desta, no Brasil, em 1889 e na Constituição de 1891.[2] E essa visão não desapareceu mesmo na atualidade. Ainda hoje se entende que ele deve comandar a governança e é visto como o bom ou mau se logra êxito na sua política.
Entretanto, devido ao Estado de Direito que a Constituição consagra, não pode ele nada que não seja o que aquela lhe concede, regulado pela lei, obra do Legislativo.
III. O PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO.
Assim, a atuação governamental depende do apoio ou, ao menos, da tolerância da maioria parlamentar. Esta é a razão que, salvo nos sistemas bipartidários e na hipótese de que o partido do Presidente seja isoladamente majoritário, o aparentemente todo poderoso Chefe do Governo depende do apoio de uma coalizão de partidos. Daí o chamado presidencialismo de coalizão.
Na verdade, o valor desta coalizão depende de vários fatores que adiante sumariamente serão examinados. Um é o sistema eleitoral para a Chefia de Estado e para o Legislativo. Outro é a disciplina e coesão dos partidos. Um terceiro é o número e o peso dos partidos e relação entre eles, que forma o sistema de partidos. Este, por sua vez. dependente do sistema eleitoral. É aqui necessário pedir socorro à Ciência Política. Além de não se poder pôr de parte a experiência histórica do país.
Tome-se por ponto de partida a eleição dos Poderes.
A eleição do Presidente da República se faz numa eleição direta em dois turnos.
Esta eleição nacional é assim marcada por uma personalização do Poder que supera de muito o seu programa de governo, quando existe. E quando existe é obra de um marqueteiro, mais interessado em ganhar votos do que no destino do País. Assim a eleição é profundamente marcada pela propaganda, que explora o irracional do ser humano, paixões, sentimentos, esperanças, etc.
Isto conduz a uma escolha – não vou ao extremo da célebre frase de Afonso Arinos sobre o “plebiscito entre dois demagogos” – mas entre o melhor e o pior, e às vezes pelo visto como menos pior.
A eleição para a Cãmara dos Deputados e de 1/3 ou 2/3 do Senado coincide com o primeiro turno não decisivo da eleição presidencial. Nestas, os partidos jogam para eles mesmos, tentam antes de tudo ter uma grande bancada. Se se vinculam a candidato a Presidente, salvo o partido que lançou o mesmo, pouco lhes preocupa a vitória ou a derrota porque com uma bancada poderia negociar o apoio e as benesses do Presidente.
E a eleição para o Legislativo é muito marcada pelos aspectos locais da disputa, pelos nichos de eleitorado, pelas rivalidades e quizílias nos Estados e a propaganda nela tem força menor.
Ademais, no tocante à eleição, um fator institucional deve ser levado em conta. Cada Estado elege entre oito e oitenta deputados. Estes são obviamente os que têm maior população e o maior eleitorado. Na eleição para Presidente, estes últimos têm peso essencial, nas composições da Câmara, o peso maior para o futuro não o é. Em consequência, o número de votos do eleito para a Presidência não equivale necessariamente ao dos partidos no Congresso.
Por outro lado, o sistema partidário brasileiro deriva da representação proporcional. Esta como Duverger demonstra, tende à multiplicação infinita de partidos. E os “esfarinha” tornando todos os partidos pequenos. A prova está nos resultados da última eleição em que trinta e dois partidos disputaram mandatos na Câmara do Deputados e vinte três elegeram entre noventa e nove deputados (PL) e um deputado (Rede Sustentabilidade). Isto não é mais um mero sistema multipartidário, necessita de outra designação, é um polipartidarismo visando meramente eleger parlamentares.
Neste quadro, o programa dos partidos, se existe, não tem importância. Não será em razão do programa, se houver, que apoiarão o Presidente. Não pode assim existir um verdadeiro presidencialismo de coalizão, mas um presidencialismo de escambo na governança. As federações de partidos reduzirão tal situação, mas não conseguirão mudar o quadro. Nem as restrições a partidos de bancadas irrisórias.
Acrescente-se que a fidelidade dos eleitos ao partido foi esvaziada. Anos atrás, em 2007, o TSE, com a confirmação do STF (Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604), quis restabelecer a fidelidade partidária. Foi até além do que previa a Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 1/1969, no art. 152, V e parágrafo único, que limitava a perda do mandato nesse caso apenas a parlamentares. Pela Resolução nº 22.610, de 25 de outubro de 2007, art. 13, foi estendida a cláusula de fidelidade aos eleitos para o próprio Executivo.
A reação contra isto não demorou. Foi introduzida na Lei dos Partidos (Lei nº 9.096/95) um art. 22-A que criou a chamada “janela parlamentar”. Ou seja, além dos programas serem frouxos e dificultarem a cobrança da fidelidade, todos os membros de Legislativo podem mudar de partido numa época periódica – trinta dias antes da data final do prazo para filiação, que varia conforme a eleição. Assim, deixar um partido e ir para outro se tornou na prática normal. E, portanto, constituir uma base partidária não basta, mas importa no escambo.
Ademais, não se pode ignorar o fato de que hoje na Câmara, ao menos, existe uma miríade de Frentes (duzentos e setenta e oito até ontem), vinculadas a interesses específicos. Afora as “bancadas”, como a da agropecuária (com duzentos e oitenta e oito deputados), da bala (duzentos e quarenta e sete deputados), evangélica (duzentos e treze deputados) que não respeitam fronteiras partidárias e concorre com os partidos na disputa pela “fidelidade”. E nenhum dos partidos existentes conta com uma centena de deputados.
Em razão deste quadro, um problema institucional grave se instaurou. Como todo partido, confederação sindical, a OAB, podem propor ações de inconstitucionalidade ou “arguição” de descumprimento de preceito fundamental, decorrente da Constituição[3] (qual não o é?), o STF foi soterrado por ações, às vezes visando a fazê-lo um terceiro turno da votação parlamentar, às vezes querendo que ele “legisle”. Isto, aliás, claramente proibido pelo art. 103, § 2º da Carta de 1988.
Ocorre em decorrência disto o que apontei em artigo publicado em 1994 (Poder Judiciário na Constituição de 1988: judicialização da política e politização da justiça, publicado na Revista de Direito Administrativo, vol. 198) que apontava que a “judicialização da política” levaria à “politização da Justiça”. É isto hoje patente não só por força da extensão das ações sobre constitucionalidade que apontou acima, mas também por o Executivo também recorrer ao guardião da Constituição como um terceiro turno, quando derrotado em deliberação parlamentar.
IV. OBSERVAÇÕES FINAIS.
O quadro acima demonstra a inviabilidade de restabelecer o presidencialismo de coalizão e, mais do que isto inviabiliza o próprio “presidentismo” brasileiro tradicional. Dada a flagrante inviabilidade do parlamentarismo em face desse polipartidismo (como o reconhece em recente trabalho o eminente mestre português, Prof. Carlos Blanco de Morais (entrevista publicada no Correio Braziliense em 1º de agosto de 2024) e necessário procurar outro caminho. Destes, a Constituição portuguesa de 1976 opta por um semiparlamentarismo, a francesa de 1958, por um semipresidencialismo.
De tudo o que apontei decorre - salvo melhor juízo, como impõe o “juridiquês” – a imperiosa necessidade de rever o sistema de governo brasileiro. Isto, porém, acarreta a necessidade de repensar o sistema eleitoral, o sistema partidário, o sistema representativo, pois, cada um deles influi nos demais. É isto urgente e imprescindível para a democracia brasileira.
Este trabalho sintético consiste basicamente na intervenção do autor para o XII Fórum de Lisboa, mas que não pôde ser exposto integralmente devido a circunstâncias do momento.