Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Opinião|Os negócios do saneamento precisam servir à causa da universalização (e não o inverso)

PUBLICIDADE

convidado

Em julho de 2020, com a aprovação do Marco Legal do Saneamento Básico (MLS), o Brasil finalmente reconheceu o desafio de prover água tratada e coleta de esgoto para toda a população como prioridade nacional.

Hoje, passados mais de três anos, e a apenas uma década do fim do prazo para o cumprimento das metas de universalização estabelecidas pelo MLS, uma avaliação realista dos avanços conquistados pelo setor deve qualificá-los como moderadamente positivos – claramente aquém do necessário para o atingimento das metas.

Rubens Naves Foto: Divulgação

PUBLICIDADE

Quando o MLS foi aprovado, cerca de 84% dos brasileiros recebiam água potável e 53% tinham coleta de esgoto domiciliar. Hoje, com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento registrando pequenos aumentos desses porcentuais, o País tem ainda cerca de 34 milhões de pessoas sem acesso à água tratada e 94 milhões sem coleta de esgoto. Lembrando que as metas estabelecidas pelo Marco são a provisão de água potável para 99% da população e de coleta de esgoto para 90% dos brasileiros até 2033.

Diante dessa realidade, impõe-se a necessidade de identificar os gargalos que têm impedido a expansão prevista pelo MLS.

Identificamos quatro desafios principais.

Publicidade

1. Mobilização e atração de investimentos

Nos últimos três anos, desde a aprovação do Marco Legal, 28 leilões para provisão de serviços de saneamento foram realizados em 17 estados e resultaram no compromisso de aporte de R$ 98 bilhões em novos investimentos.

Em 2020, a consultoria KPMG estimou em R$ 700 bilhões o investimento total necessário para universalizar o saneamento no Brasil. Atualizado, esse valor já estaria na casa de R$ 1 trilhão. Estudioso do assunto, o economista Marcelo Trindade, do BNDES, faz hoje uma estimativa que situa o investimento total necessário para o cumprimento das metas do MLS em um patamar bem mais factível. Segundo seus cálculos, nos próximos dez anos será necessário um aporte de pouco mais de R$ 315 bilhões – uma média de R$ 31,5 bilhões por ano.

Uma boa notícia é o forte aumento do protagonismo do próprio BNDES nesse esforço de financiamento. O banco público de desenvolvimento deverá, neste ano, investir diretamente R$ 3,7 bilhões, cerca de dez vezes o montante aportado em 2020, ano de aprovação do MLS.

Os benefícios decorrentes dessa maior participação do BNDES no esforço de expansão do saneamento não se limitam aos recursos financeiros mobilizados. A alta qualidade técnica do banco no desenho de projetos e modelos de financiamento e o acréscimo de confiabilidade e segurança resultante da sua crescente participação são importantes exemplos e incentivos para a atração de novos investidores e mais recursos.

Publicidade

Os valores totais investidos e compromissados são um indicador importante, mas, por si só, a mobilização de recursos não garante a universalização. Se os investimentos se concentrarem na aquisição privada de concessões de serviços em regiões mais ricas do País, onde a maioria da população já tem saneamento, poderemos ter um cenário de privatização seletiva do setor no qual o objetivo central do País e das metas do MLS não seja cumprido.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

2. Pragmatismo baseado em evidências

O cumprimento das metas do Marco Legal é um objetivo desafiador. Para cumpri-lo, além de vultosos investimentos, é necessário identificar e priorizar desafios centrais, distribuir esforços e recursos com eficiência e eficácia, e integrar, numa sinergia produtiva, interesses e atores públicos e privados. Tudo isso requer, como pré-requisito, uma visão bem-informada e pragmática da realidade brasileira e das experiências e modelos de saneamento no País e no exterior.

No início da década de 1980, formou-se uma onda de privatização do saneamento impulsionada por uma versão radicalmente “mercadista” do liberalismo econômico, que passou a ser chamada de neoliberalismo. Em 1989, a Inglaterra, então na vanguarda neoliberal, privatizou todo o seu sistema de saneamento com base na promessa de que a fórmula beneficiaria a população com os frutos da maior eficiência da iniciativa privada. Caberia a uma agência pública independente regular o setor estabelecendo parâmetros que alinhariam a “ganância saudável por lucro e dividendos” ao interesse público. Hoje, passados mais de 34 anos, o modelo inglês só é uma história de sucesso para altos executivos, controladores e acionistas das empresas privadas de saneamento. Com dívidas de mais de R$ 300 bilhões, essas empresas, em parceria com a agência reguladora, produziram um fracasso socioeconômico e ambiental – com aumentos de tarifas e poluição – tão retumbante que até o atual governo, de direita, e os veículos de mídia mais conservadores se posicionam contra o modelo, e discutem-se formas de devolver o setor ao controle público.

O exemplo inglês está longe de ser exceção. Segundo dados do Instituto Transnacional (TNI), entre a virada do milênio e março de 2023, houve 339 processos de reestatização de serviços de saneamento que haviam sido privatizados e de criação de novos sistemas e operadores públicos mundo afora. Essa tendência, frequentemente chamada de “remunicipalização”, é liderada, em termos de número de casos, por países como França e Estados Unidos (que estão longe encabeçar algum tipo de cruzada anticapitalista, evidenciando o caráter não dogmático do fenômeno).

Publicidade

Um amplo conjunto de evidências acumuladas nas últimas décadas mostra que, na prática, sob controle privado, indústrias multibilionárias prestadoras de serviços públicos básicos de modo “naturalmente” monopolista não são uma boa ideia do ponto de vista do interesse público. Diante de acontecimentos recentes em São Paulo, na área da distribuição de energia elétrica, mesmo sem entrar numa análise específica da privatização da antiga estatal Eletropaulo, é razoável identificar indícios, bastante típicos, de mais um caso que confirma essa constatação geral.

Quando um setor é dominado por poderosos grupos privados, seus interesses tendem a exercer forte influência sobre governantes, legisladores e reguladores – o que não costuma dar bons resultados socioambientais em longo prazo no caso do saneamento básico.

Isso não quer dizer que o melhor caminho aponta para o extremo oposto. Estudos sobre a remunicipalização de serviços públicos na Europa mostram uma grande diversidade de novos modelos, frequentemente com participação importante do setor privado. O que caracteriza esse movimento, portanto, não é uma simples reestatização, mas a busca pragmática e flexível de parcerias e sinergias sob efetiva coordenação pública.

3. Fidelidade aos objetivos do Marco Legal

Tendo em vista as evidências mencionadas acima, um exemplo concreto provê a melhor ilustração para este terceiro desafio: o projeto de privatização da Sabesp promovido pelo atual governo de São Paulo.

Publicidade

A compreensão das experiências do setor, da realidade brasileira e dos desafios da universalização demonstra, por vários ângulos, quão arriscada e potencialmente prejudicial para os paulistas e o Brasil é esse projeto.

Exemplo nacional e internacional de qualidade, a empresa paulista de saneamento é exemplar também como modelo de parceria eficiente entre público e privado. Controlada pelo governo, a Sabesp é uma empresa altamente lucrativa, para o estado e para os acionistas, praticando historicamente tarifas módicas, e com desconto para famílias de baixa renda, mantendo compromisso com a preservação ambiental.

Privatizar a Sabesp é tomar a contramão do que hoje indica a experiência internacional nas áreas do saneamento e da gestão de recursos naturais. Trata-se de atrair uma parcela considerável dos investimentos potenciais para a expansão do saneamento no País para o estado mais rico da federação, onde a maior parte da população já é bem atendida e que não deverá ter maiores dificuldades, com ou sem privatização, para cumprir as metas de universalização. Não faz sentido do ponto de vista do interesse público mais amplo e duradouro – e poderá tornar mais lenta a expansão do saneamento para outras regiões do País.

A orientação privatizante do Marco Legal foi defendida como solução para reduzir rapidamente o grave déficit nacional de saneamento. Mas se o grande objetivo do MLS é mesmo o da universalização, em vez de concentrar recursos na privatização das mais bem-sucedidas empresas do setor, deveríamos estar prioritariamente empenhados na viabilização de modelos que permitam levar serviços de qualidade, de modo sustentável, às populações mais pobres e desassistidas.

4. Enfrentamento estratégico dos desafios climáticos

Publicidade

O Marco Legal limitou a titularidade (competência para prestar ou executar determinada função ou serviço) dos municípios – titulares primários do saneamento, segundo a Constituição Federal – ao proibi-los de se associarem com as empresas estaduais de saneamento básico, como ocorre atualmente com o sistema público regional executado pela Sabesp e outras empresas (Sanepar, do Paraná, e a mineira Copasa).

A atual crise ambiental e a crescente escassez de recursos vitais – especialmente a água – poderia justificar um aumento do protagonismo da União na orientação, regulamentação e regulação do setor do saneamento de modo sistêmico e integrado. Mas ao impor um modelo privatizante, que aumenta substancialmente o peso dos agentes e interesses de mercado na operação e gestão do sistema, o MLS contradiz essa justificativa e põe em risco o interesse público de longo prazo.

Defensores do avanço da gestão privada do saneamento refutam essa contradição alegando que basta que o poder público cumpra a contento o seu papel regulador para que o amplo e inclusivo interesse público e a sustentabilidade socioambiental sejam contemplados. Esse argumento, parcialmente válido, pode se mostrar essencialmente enganoso – como demonstram as já mencionadas experiências de privatização de serviços essenciais mundo afora.

Tomadas em conjunto, as experiências de privatização desses serviços mostram que, ao dominar um setor, o capital privado adquire capacidade de, em grande medida, alinhar os seus rumos conforme os interesses de controladores, acionistas e mercados.

Como universalizar o saneamento até 2033

Publicidade

A realidade do saneamento básico no Brasil e as metas de universalização fixadas pelo Marco Legal requerem sinergia eficiente e eficaz dos atuais agentes e recursos do setor e atração de novas parcerias e mais investimentos. Para ser bem-sucedido, esse esforço precisa ser guiado por um pragmatismo baseado em evidências, pela priorização das regiões mais pobres e desassistidas e por uma visão estratégica de longo prazo que contemple os crescentes desafios climáticos e socioambientais.

Numa frase: os negócios do setor saneamento precisam servir à causa da universalização sustentável dos serviços (e não o contrário).

*Rubens Naves, advogado, autor de Saneamento para Todos (ed. Palavra Livre) e Água, Crise e Conflito em São Paulo (ed. Via Impressa). Ex-professor de Teoria Geral do Estado da PUC-SP

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.