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Opinião|Um fato macabro

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Atualização:

Um fato estarrecedor, próprio da patologia social, foi objeto do noticiário, como revelou o portal do G1, em 16.4.24:

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“Uma mulher foi levada para a delegacia, na tarde desta terça-feira (16), depois de levar um cadáver em uma cadeira de rodas para tentar sacar um empréstimo de R$ 17 mil em uma agência bancária de Bangu, na Zona Oeste do Rio. Ela acabou sendo presa.

Funcionários do banco suspeitaram da atitude de Érika de Souza Vieira Nunes e chamaram a polícia. O Samu foi ao local e constatou que o homem, identificado como Paulo Roberto Braga, de 68 anos, estava morto – aparentemente havia algumas horas. A polícia apura como e exatamente quando ele morreu.

“Ela tentou simular que ele fizesse a assinatura. Ele já entrou morto no banco”, explicou o delegado Fábio Luiz, que investiga o caso.

Na delegacia, a mulher disse que sua rotina era cuidar do tio, que estava debilitado. A polícia apura se ela é mesmo parente dele.”

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Ainda acrescente-se daquela reportagem:

“Um vídeo feito pelas atendentes do banco mostra que a todo tempo Érika tentava manter a cabeça do homem levantada, usando a mão, e conversava com o suposto parente – que, claro, não responde.

“Tio, tá ouvindo? O senhor precisa assinar. Se o senhor não assinar, não tem como. Eu não posso assinar pelo senhor, o que eu posso fazer eu faço”, afirma a mulher.

Ela mostra o documento e afirma que ele tinha que assinar da forma que estava ali e diz: “O senhor segura a cadeira forte para caramba aí. Ele não segurou a porta ali agora?”, pergunta às atendentes, que dizem não ter visto.

“Assina para não me dar mais dor de cabeça, eu não aguento mais”, completa.

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Nesse momento, as funcionárias tentam intervir e uma delas comenta sobre a palidez do homem: “Ele não está bem, não. A corzinha não tá ficando...”

“Mas ele é assim mesmo”, responde a suposta sobrinha.

A mulher responde: “Ele não diz nada, ele é assim mesmo. Tio, você quer ir para o UPA de novo?”, questiona ela, sempre sem resposta.”

Érika foi presa em flagrante e vai responder por furto mediante fraude e vilipêndio de cadáver.

Necessário estudar os crimes acima listados.

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No crime de furto mediante a fraude há o uso de artifício, ou ardil, para induzir o lesado em erro sobre qualquer circunstância. Bem explica Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, parte especial- artigos 121 a 212-7ª edição, pág. 275) que qualifica a fraude o crime de furto, quando o agente se serve de artifício ou embuste para fazer a subtração. Diferente é o estelionato, porque neste ilícito penal não há subtração: o lesado entrega livremente a coisa ao estelionatário, iludido pela fraude. Exemplo do crime: o agente se faz passar por guarda sanitário, para mais facilmente penetrar na casa alheia e furtar ou quando o agente mantém a vítima em conversa, distraindo-a para que o comparsa pratique o furto.

No crime de furto mediante fraude, esta é apenas meio para a retirada da coisa.

Observo a jurisprudência para o caso: no furto com fraude há retirada contra a vontade da vítima; no estelionato, a entrega é procedida livremente. No furto com fraude há discordância da vítima; no estelionato, o consentimento(RT 531/370 – 371). A conduta no furto é de tirar, no estelionato é de enganar para que a vítima entregue a coisa(RT 552/355).

Como ensinaram Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini(Manual de direito penal, volume II, 25ª edição, pág. 214) a fraude é o meio enganoso, o embuste, o ardil, o artifício empregado pelo agente para subtrair a coisa alheia.

Por certo, distingue-se o furto com fraude, em que o engodo possibilita a subtração, do estelionato, em que o agente obtém a posse da coisa que lhe é transferida pela vítima por ter sido induzida em erro(RJDTACRIM 1/98). Lembraram ainda Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini(obra citada, pág. 214) que, na jurisprudência, apontam-se as seguintes diferenças: no primeiro há retirada da coisa contra a vontade da vítima; no segundo, a entrega é procedida livremente(RT 540/324 e 436/380; RJDTACRIM 5/101). No furto, há o amortecimento da vigilância; no estelionato, engodo(RT 523/419); naquele, o engodo é concomitante com a subtração; neste, é antecedente à entrega(RT 554/378, JTACrSP 68/233). Anote-se que a conduta do furto é de tirar, no estelionato é de enganar para que a vítima entregue à coisa(RT 552/355, 653/303).

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Necessário investigar se houve concurso de agentes.

O furto será qualificado se cometido por mais de 2(dois) agentes, não se exigindo a presença de coautores na fase executória. Por sua vez, Nelson Hungria(Comentários ao código penal, volume VII, 44) considera necessário o ajuste prévio ou combinação.

O furto qualificado com presença de duas pessoas existirá embora apenas uma tenha realizado a execução material do crime, limitando-se a outra ou as outras a participação secundária. Não se exige um acordo precedente, mas apenas a consciência recíproca de cooperação na ação comum criminosa.

Por fim, o fundamento da agravante independe da presença de todos na execução. Heleno Cláudio Fragoso( Obra citada, pág. 278) baseia-se nas lições de Manzini, De Marsico e Vannini, na análise de dispositivo no Código Penal da Itália.

Se o crime for praticado em bando ou quadrilha(hoje associação criminosa, em face da Lei de Organizações Criminosas) haverá concurso material entre o crime discutido e aquele do artigo 288 do Código Penal. Já se decidiu, no entanto, que há concurso material entre o furto simples, pois não se aplica o dispositivo em exame, e o crime do artigo 288 do Código Penal (Jurisprudência criminal, n. 262).

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Por outro lado, é mister investigar se houve o vilipêndio de cadáver.

Vilipendiar cadáver é crime previsto no artigo 212 do Código Penal.

Vilipendiar é tratar com desprezo grosseiro, aviltar, ultrajar, etc. Tal conduta pode vir por palavras, por atos ou escritos. É o gesticular ofensivo, o arremesso de imundícies, a prática de obscenidades.

Ensinaram Celso Delmanto e outros(Código penal comentado, 6ª edição, pág. 457) que cadáver é o corpo humano morto.

Para Heleno Fragoso(LIções de direito penal, parte especial, 1995, volume I, pág. 412) e ainda Magalhães Noronha(Direito penal, 1995, volume III, pág. 89) a conduta deve ser praticada, perante, sobre ou junto do cadáver ou suas cinzas.

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Além de cadáver, protege-se as cinzas, resíduos de combustão ou cremação do corpo (autorizada ou criminosa). São incluídos na proteção as partes do corpo, o esqueleto, caveiras etc.

O tipo subjetivo é o dolo, que consiste no desejo consciente de desprezar o corpo com a intenção de depreciá-lo (RT 532/368). Para Magalhães Noronha (Direito Penal, 3º volume, 1977, pág. 96), não existirá o delito sem o dolo genérico. Disse ele: “não colhe dizer que o crime é contra o respeito aos mortos, pois, se de fato o bem jurídico é esse, não menos certo é que ele é ofendido pela ação contra o morto. É mister, portanto, que o agente tenha o fim ou escopo de aviltar o cadáver.”

Consuma-se o crime com a prática do ato ultrajante, sendo possível a tentativa.

O crime tanto pode ser formal como material; no primeiro caso, a ofensa oral; no segundo, o vilipêndio por ato. Como crime formal, não se admite a tentativa, tratando-se de crime unissubsistente. Na segunda forma, pode haver o fracionamento do iter, não chegando o agente ao resultado querido, como ensinou Magalhães Noronha (obra citada, pág. 96), sendo possível a tentativa.

Teria havido o homicídio contra idoso? Ele estaria sendo explorado? Sabia a pessoa que teria praticado o crime que já estaria diante de um morto?

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É algo macabro, surreal.

Isso tudo deve ser analisado.

O caso trazido à colação revela mais um capítulo de uma triste crônica do cotidiano, em que os limites éticos são ultrapassados da forma mais cínica.

Convidado deste artigo

Foto do autor Rogério Tadeu Romano
Rogério Tadeu Romanosaiba mais

Rogério Tadeu Romano
Procurador regional da República aposentado, professor de Processo Penal e Direito Penal e advogado
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