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Opinião|Você toma 1 e dá 11: as violências que eu vi no trote da faculdade

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Atualização:

“Trote é o melhor investimento da vida do estudante de medicina: você toma 1 e dá 11!”. Era abril de 2000, eu estava iniciando o curso de medicina numa universidade federal, e essa foi uma das frases que mais ouvi no meu primeiro dia de aula. Minhas lembranças desse primeiro mês também têm várias passagens memoráveis: “Vai, caloura! Vai, baiana! Desce gostoso nessa boquinha da garrafa!” - tentavam me forçar a executar (e eu nunca dancei obrigada por ninguém nessa vida) toda santa vez que eu chegava em algum ambiente festivo.

Carol Sarmento Foto: Mariana Harder

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“Nós te adoramos, honoráveis veteranos!” era a frase que vinha em repetições uníssonas com uma reverência (pseudo) honrosa cada vez que um veterano estava por perto. As filas de elefantinho dos meninos com as cuecas expostas por sobre a vestimenta, e um look frequentemente composto de roupas estragadas, pintadas e a pele rasurada, além da já tradicional prática de ser obrigada a pedir dinheiro no semáforo. Ah!, teve doação de sangue também (vejam que legal esse trote solidário!), mas eu não doei, porque era menor de idade e alguém da minha família teve que fazer às vezes no meu lugar, caso contrário, eu sofreria alguma punição.

Olhando o filme de trás para frente, por mais que consiga afirmar que esse jeito tosco de receber e acolher pessoas muito jovens, inseguras e ansiosas não tenha me traumatizado ou me levado a ter questões ainda a resolver na terapia, posso garantir que não gostaria de repetir um dia sequer daqueles, não reviveria esse filme e tampouco acredito que tenha gerado inclusão, pertencimento ou boa impressão na garota adolescente de sotaque baiano carregado. Quando, por rebeldia e zoeira sagitariana típica, inventei de trocar o “honoráveis” por “nós te adoramos, abomináveis veteranos!” na hora de fazer a honraria, fui levada pelo braço para ser submetida a uma prenda vexatória e passei a ter a cara mais carregada de tinta do que a média.

Assisti alguns jogos entre universidades e vi minha gente gritar para as torcidas frases que serviam para baixar a moral de quem pagava faculdade particular, que eram chiste de quem não tinha sido aprovado na escola pública, que urrava sobre obscenidades que diziam o que os outros faziam para ter dinheiro para custear a mensalidade. Isso era gritado a plenos pulmões, em coro. Várias vezes. Sempre regado a muita bebida e a drogas de tudo que é tipo.

Vi alguns poucos colegas sofrerem processos disciplinares porque “bisbilhotaram as intimidades de algumas pacientes” nas palavras do coordenador do estágio da época. Um eufemismo para o que é, na verdade, uma ação criminosa tipificada como estupro de vulnerável, e uma falta de ética gigantesca. Mas tudo bem discreto, tanto que poucos souberam do acontecido. Melhor abafar, vai que isso se espalha por aí, e a sociedade descobre? Em tempos de pouca internet e nenhuma rede social, esses sujeitos se safaram bem.

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Queria te contar que, há um ano, pouco tempo depois de vir à tona os crimes e os abusos do anestesista que estuprava mulheres sob seus cuidados no Rio de Janeiro, tive nojo e muito ódio ao ouvir colegas médicos conversando sobre o ocorrido e falando que “seria mais interessante se a paciente não estivesse sedada, ou se fosse com a circulante da sala” (PASME!, pode gritar aí lendo, é abjeto, é criminoso, é infame, é o fim do mundo a gente pensar que tem homem, tem médico que pensa e fala assim, e que pode cuidar de mim, de você e de gente que amamos). Sim, o ano é 2022 e ouvi isso, passei por isso. E denunciei isso também. Os ditos profissionais que pensam, falam e agem assim foram alunos que certamente se safaram, mas que praticaram abusos e absurdos por vezes e vezes seguidas. Ninguém pensa assim da noite para o dia; ninguém é bom de véspera ou mau de improviso, diz o ditado. Há uma construção, há repetições, há condescendência da sociedade e há o silenciar dos lados mais fracos.

A construção moral, ética, jurídica e profissional desse ser que vai cuidar de pessoas tem que ser enxergada de maneira diferente, tanto pelos professores, coordenadores e reitores quanto pela sociedade. Os trotes ocorrem debaixo das barbas de gente que gere as universidades. Assim, pergunto: por que não proibir? Tão simples quanto? De cima para baixo, reitor falando: ACABOU! Simples assim. Violências, situações vexatórias e descaracterização do aluno para virar “bixo” acontecem diante de quem, teoricamente, deve ensinar técnica, respeito e empatia – e eu nunca vi professor algum se posicionar contra o tal do trote. Sem falar que certamente quem sofre mais nesses cenários são mulheres – e isso não é novidade alguma.

Esse corporativismo da classe médica já começa ali dentro da universidade, quando não se denunciam abusos e não se nomeiam os crimes que ocorrem; onde o lado fraco e hipossuficiente é exposto, objetificado e, por muitas vezes, não pode fazer nada por ser doente e depender do sistema.

A rivalidade imoral de torcidas nos jogos e posturas criminosas nesses cenários ocorrem há muitos anos, e só agora estão vindo à tona. Mas, anota aí, não vai parar nesse acontecimento recente. Tem tantas e mais coisas que acontecem nesses espaços que passam léguas longe de bom senso, bons modos, diversão sadia da juventude e licitude, e virão à tona. E nem que haja mais policiamento, vigilância pela sociedade, denuncia civil e boca no trombone: essa realidade regada pela sensação de quase-deus, meu-dinheiro-não-acaba e papai-limpa-minha-barra tem que mudar. Tem que haver limites. Torçam por isso; eu torço muito.

O melhor investimento da vida do estudante de medicina não é o trote, em que ele toma 1 e dá 11, como eu aprendi cedo. É aprender sobre as coisas que fazem a gente ser gente, afinal todo mundo ali está sendo talhado para isso: cuidar de gente. E não faz o menor sentido desejar ser um bom cuidador de gente e viver a vida adoidada, aloprada, criminosa, exibindo o pênis em público, passando a mão nas garotas, desrespeitando pessoas de grupos de minoria ou de menos posses, objetificando outrem. Quem sabe aprender sobre ética demanda inclusive ter role models adequados na vida acadêmica, e um bom começo de aula já poderia ser a demonstração prática de acolhimento e recepção respeitosa e solidária dos alunos recém aprovados em moldes diferentes da realidade do trote e do “bixo”.

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A comunidade acadêmica precisa rever como ensinar, incutir e promover discussões sobre conteúdos que reflitam sobre literatura, arte, filosofia, cultura, espiritualidade e compaixão para que, dos seus bancos, saiam profissionais que entendam sobre gente, que cuidem de gente e sejam gente. E já passou da hora de haver tanta leniência diante de posturas criminosas, abusivas e preconceituosas por parte desses alunos: o preço que estamos pagando, enquanto sociedade, está caro demais.

*Carol Sarmento, médica intensivista e paliativista e criadora do Projeto Cuida

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