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Opinião|Judicialização da política no caso da desoneração reflete limites do governo Lula

Entregar ao STF a possibilidade de dar a palavra final quando nada mais pode ser feito no campo da política significa dar a juízes não eleitos um poder superior ao dos representantes do povo

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Foto do author Diogo Schelp

Quando se fala em equilíbrio dos Poderes da República, costuma-se pensar que é possível encontrar um ponto ideal, neutro, em que as três forças (Executivo, Legislativo e Judiciário) se equiparam com perfeição. Não é assim que funciona. Cientistas políticos identificaram um fenômeno cíclico, em que os pesos e contrapesos do sistema democrático fazem a balança pender mais para o lado de um dos Poderes a depender das circunstâncias. Mesmo nas democracias mais avançadas, ora o protagonismo está com o Executivo, ora o Legislativo assume a primazia, ora é o Judiciário que predomina. Com o tempo, a reação dos outros Poderes ao vigor excessivo de um deles modifica novamente todo o arranjo de forças.

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Existe uma percepção no Brasil, atualmente, de que o Judiciário se sobressai aos outros Poderes, ao mesmo tempo em que o Legislativo drena atribuições orçamentárias do Executivo e procura meios de conter o avanço da magistratura. O mais novo episódio desse cabo de guerra com três pontas é a disputa em torno da continuidade da desoneração da folha de pagamentos de municípios e de empresas de 17 setores da economia.

A medida, aprovada pelo Congresso, representa um rombo de quase R$ 16 bilhões só em 2024 nas contas do governo. O presidente Lula vetou trechos da lei, o Congresso derrubou os vetos, o governo recorreu ao STF, e este, em decisão monocrática do ministro Cristiano Zanin, suspendeu a medida. O assunto agora está no plenário virtual do Supremo, que também recebeu um recurso contrário à suspensão por iniciativa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Os presidentes dos Três Poderes, Barroso, Pacheco e Lula no ato que marcou a retirada das grades da frente do STF, em fevereiro Foto: Antonio Augusto/STF

O governo Lula pode estar correto no mérito, mas Pacheco tem razão na forma. O jogo político pressupõe negociações entre governo e Legislativo em busca de um consenso. Nem sempre o governo ganha. Entregar ao STF a possibilidade de dar a palavra final quando nada mais pode ser feito no campo da política significa dar a juízes não eleitos um poder superior ao dos parlamentares, os representantes do povo. Foi assim que Pacheco interpretou a manobra. “Isso alimentou o fenômeno da judicialização da política”, disse ele.

Outro que usou a expressão foi o deputado Joaquim Passarinho (PL-PA), presidente da Frente Parlamentar do Empreendedorismo: “A judicialização da política simboliza um retrocesso em termos sociais e econômicos”, disse ele, aproveitando para acrescentar que a decisão do governo de recorrer ao STF para suspender a derrubada do veto no Congresso apenas aumenta e prolonga as tensões entre o Executivo e o Legislativo.

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A judicialização da política não é um fenômeno novo nem é exclusivo do Brasil. Muitas vezes, é confundida com outra expressão muito em voga, o ativismo judicial. Mas há uma diferença essencial entre elas: o ativismo judicial é melhor compreendido como a usurpação de atribuições de outros Poderes por juízes voluntariosos. No caso de ministros do STF, isso ocorre, por exemplo, quando eles fazem uma interpretação criativa da Constituição, expandindo o seu significado original, para obter o resultado que eles acham correto e melhor para a sociedade. Já a judicialização da política não se dá necessariamente a partir da vontade de um juiz ou ministro do Supremo. Há outras circunstâncias ainda mais frequentes que levam a Justiça a arbitrar conflitos do campo político.

Uma delas é a tendência de descentralização da administração pública e a profusão de órgãos estatais em todos os níveis da federação, além da diversificação de instâncias formuladoras de políticas públicas. Como resultado, controvérsias entre municípios e governo federal ou entre diferentes órgãos do Estado acabam tendo que ser decididas em ações na Justiça. Existe também a judicialização de baixo para cima, ou seja, o fenômeno que leva cidadãos e movimentos sociais a tentar assegurar seus direitos via judicial, no lugar do mais custoso trabalho de convencimento de políticos por meio do lobby ou do aumento de representação parlamentar.

O que se viu na decisão do governo Lula de recorrer ao STF para suspender a desoneração da folha de pagamentos de empresas e municípios, por sua vez, foi a judicialização da política de cima para baixo, ou seja, quando um dos Poderes transfere para o Judiciário a solução de controvérsias que não consegue – ou não quer, para evitar desgaste político – resolver por meio de negociações com um terceiro Poder. Essa transferência pode ocorrer ativamente, como no caso do recurso contra a desoneração, ou por inércia, quando o governo, por exemplo, deixa que partidos ou sindicatos contestem no STF uma lei aprovada pelo Legislativo.

Em um sistema em que quase tudo na vida pode ser judicializado, é natural que a política também possa. Por isso, a judicialização da política é um fenômeno comum em países democráticos. Alguns fatores podem exacerbar essa tendência, como os problemas fiscais enfrentados pelo governo, os escândalos de corrupção envolvendo a classe política, a maior capacidade de organização dos movimentos sociais e o emaranhado de leis muitas vezes contraditórias que são colocadas em vigor a todo instante.

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No caso da judicialização da política de cima para baixo promovida por Lula, trata-se de um reflexo da fragilidade da sua articulação com o Congresso e uma investida para colocar algo no lugar do presidencialismo de coalizão que lhe permitiu governar em seus dois primeiros mandatos. É uma tentativa de reequilibrar o seu poder diante dos outros.

Opinião por Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor executivo da Veja entre 2012 e 2018. Posteriormente, foi redator-chefe da Istoé, colunista de política do UOL e comentarista da Jovem Pan News. É mestre em Relações Internacionais pela USP.

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