Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, estão prestes a instituir a censura prévia no Brasil. Há o risco de que façam isso porque sentem que podem, ainda que não devam, e porque se mostram ignorantes ou esquecidos dos conceitos mais básicos de liberdade de expressão.
Um dos juízes da nossa corte suprema, Dias Toffoli, no seu voto, chegou à conclusão risível de que uma agressão física – como a de um PM que joga um cidadão do alto de uma ponte – poderia ser justificada se não houvesse limites à liberdade de “expressão”. Toffoli nem precisava recorrer a algum livro específico sobre o assunto para não passar tanta vergonha. Bastava ler a Constituição para entender que tal direito se refere à liberdade de manifestação de pensamento, de informação, de criação artística e de atividade científica. Não de jogar pessoas da ponte ou algo do tipo.
O trecho da lei que o STF pode acabar derrubando, se houver maioria para a considerá-lo inconstitucional, define quando uma empresa de internet pode ser responsabilizada por conteúdos de terceiros. Do jeito que está, isso só acontece quando elas deixam de remover um conteúdo em desrespeito a uma ordem judicial ou após notificação de vítima de violação de intimidade sexual. Se entenderem que a responsabilidade das plataformas sobre conteúdos de seus usuários é anterior a ordens judiciais ou notificações de vítimas de vazamento de fotos ou vídeos de nudez, os ministros do STF se verão compelidos a criar regras para que as empresas filtrem o que pode ou não ser publicado nas redes. Pelo que se pode depreender de declarações prévias de alguns dos integrantes da corte sobre o assunto, o que vem pela frente pode ser a criação de uma lista de temas previamente proibidos que nem mesmo o Projeto de Lei das Fake News, tão vilipendiado por deputados bolsonaristas, possui.
Eis o resultado da resistência ao PL das Fake News, que acabou engavetado na Câmara dos Deputados: a questão da moderação de conteúdo foi deixada em um vácuo jurídico que agora pode ser usado pelo STF para extrapolar sua função e legislar no lugar do Congresso.
A oposição transformou a recusa de aprovar esse projeto, ao qual chama de “PL da Censura”, em um de seus cavalos-de-batalha preferidos por três motivos. Primeiro, porque serve de argumento para a tese de que o Brasil está se transformando em uma ditadura de esquerda. Se há planos de censura, logo há ditadura (o que é uma falácia, porque existe censura em regimes democráticos). Segundo, porque muitos deputados bolsonaristas estão onde estão graças à disseminação de desinformação nas redes sociais. Não querem assistir ao desmonte de sua principal arma eleitoral e política. Terceiro, porque o lobby das big techs, que não querem se submeter ao rigor das obrigações previstas no PL das Fake News, se mostrou eficiente no Congresso.
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Até existia uma solução que poderia ao mesmo tempo reduzir as campanhas de desinformação nas redes, dirimir o temor de censura da oposição e impor menos obrigações às big techs. Essa alternativa seria aprovar uma versão minimalista do PL das Fake News, com foco exclusivo na vedação do anonimato online. Ou seja, provedores de redes sociais e de apps de mensagens ficariam a cargo de garantir que todos os donos de perfis e contas online fossem identificáveis, para que pudessem ser responsabilizados a posteriori com facilidade em caso de conduta ilícita. Seria uma forma de reduzir o chamado “comportamento inautêntico” na internet. Mas nem essa saída será suficiente se o STF derrubar o artigo 19 do Marco Civil da Internet e criar uma lista de conteúdos proibidos, que as plataformas terão de remover automaticamente. Tampouco há interesse dos parlamentares de oposição em seguir por esse caminho. A estratégia que pretendem adotar agora que o STF meteu sua colher no assunto é deixar que as novas regras de moderação, se vierem, produzam os primeiros episódios evidentes de censura para apontar o dedo para os ministros supremos e gritar: “Ditadura!”