ENVIADO ESPECIAL A PACARAIMA (RR) E SANTA ELENA DE UAIRÉN (VENEZUELA) – Na disputa eleitoral travada na cidade marcada pela chegada de venezuelanos em fuga da ditadura de Nicolás Maduro, só se fala em outra coisa. Às vésperas do pleito, a campanha em Pacaraima (RR) passa ao largo da crise humanitária que sobrecarrega a localidade, e a eleição na fronteira vai sendo definida por aspectos bem brasileiros: compra de votos em terras indígenas, assistencialismo e vácuo de fiscalização.
Os venezuelanos recém-chegados, obviamente, não votam. E como na sede do município as sondagens indicam divisão do eleitorado entre os três nomes na briga pela prefeitura, os candidatos de Pacaraima passam a maior parte do tempo nas comunidades indígenas, onde os comitês de campanha calculam estar mais da metade dos eleitores do município de 20 mil habitantes.
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Apesar de sempre associada à porta de entrada de venezuelanos, Pacaraima é um município integralmente instalado dentro das terras indígenas São Marcos e Raposa Serra do Sol, com área territorial cinco vezes a de São Paulo. Macuxis, taurepangs, wapichanas e patamonas vivem em cerca de 70 comunidades – vilarejos marcados pela pobreza, com casas de barro ou lajota, igrejas evangélicas, pequenos comércios e serviços públicos deficientes.
As distâncias percorridas são enormes. Algumas comunidades só são acessíveis a pé, com caminhadas de mais de cinco horas por matas e lavrados. Outras são conectadas por estradas de terra nas quais até caminhonetes modernas sucumbem aos buracos. A viagem de três horas desde a capital Boa Vista é mais rápida do que os deslocamentos entre a sede de Pacaraima e as principais aldeias. Os gastos com combustível não são discriminados nas prestações de contas dos candidatos.
“A imigração é descontrolada? É. Mas muita gente olha de fora e pensa que os imigrantes são eleitores. Não é assim. Hoje, a definição da eleição é dos indígenas”, afirmou Dila Santos (PDT), presidente da Câmara municipal e candidata à prefeitura.
Na briga estão, ainda, o comerciante Hermógenes do Padre Cícero (Podemos), estreante, e o empresário Walderi D’ávila (PP), segundo colocado na eleição de 2020.
Voto por sacos de cimento na Raposa Serra do Sol
É parte da campanha o corpo a corpo sob um calor sufocante na comunidade do Contão, localizada dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol. A vila, que fica a cerca de seis horas de viagem de Boa Vista, pelas BRs 174 e 433, é o maior aldeamento de Pacaraima. Portanto, ponto de peregrinação de candidatos a prefeito e a vereador.
Na frente de uma casa com paredes de barro e teto de palha seca, o candidato Hermógenes pede o apoio de um indígena que o recebe com o poder de quem controla os seis votos da família. O homem solicita uma contrapartida do político: precisa de cinco sacos de cimento para uma melhoria na maloca.
Diante da câmera, o candidato não deixa o eleitor frustrado. “Pode deixar que eu vou arrumar para o senhor. Se não der tempo de eu trazer agora nesses dias da eleição, mas depois... o senhor pode confiar em mim. Eu não sei se aqui (no comércio local) tem. Se tiver, eu mando alguém deixar aí”, responde.
A eleitora seguinte vem com um pedido de ajuda financeira ao candidato para viajar com o filho para exames: “Vou ver se arrumo pelo menos cem, tá bom?”
A compra de votos é uma realidade no Contão, comunidade grande o suficiente para decidir o próximo prefeito. O tuxaua – como é chamado o líder de cada comunidade indígena – confirma que muitos de seus liderados votarão por algum dinheiro ou materiais de construção. Romisson Fidelis, 42, diz explicar que a prática prejudica o povo, mas lamenta a falta de ascensão sobre a vontade política de todo o vilarejo como era no passado.
“Isso que o senhor está dizendo (a compra de votos) está existindo aqui no Contão, sim. Os políticos estão comprando votos. Tem pessoas que vão votar porque deram alguma coisa para elas. Isso não é bom para a comunidade. Quando formos cobrar, o político vai dizer que já deu”, salientou.
O único promotor de Justiça da cidade recepcionou a reportagem em seu gabinete com ar-condicionado. Ele disse que a campanha transcorre com “tranquilidade”. Felipe Hellu é, sozinho, o responsável por Pacaraima, Uiramutã e Amajari, municípios equivalentes em área ao Estado do Rio de Janeiro. Ciente do flagra sobre os sacos de cimentos, disse não ter “nada formal” sobre compras de votos.
Indígenas agricultores e pecuaristas podem desequilibrar eleição
Na terra indígena São Marcos, a gestão da fazenda Xanadú, em Pacaraima, ilustra o peso quantitativo e qualitativo que eles têm na disputa eleitoral.
A propriedade de 11 mil hectares com mais de 500 cabeças de gado e lavoura de milho pertence coletivamente a 26 comunidades do Alto São Marcos e é a maior da região. A produção garante aos indígenas alimento e receita para financiar reuniões, viagens e cursos.
A organização em torno da fazenda rende influência política. O gerente da propriedade, Israel Lima da Silva, virou um ativo eleitoral cobiçado pelas campanhas.
“Nós fizemos uma articulação dos tuxauas e da associação e decidimos tentar essa eleição. Estamos conscientizando nosso povo sobre a importância da política porque com a política de hoje nós não temos resultado”, disse. As campanhas exploram candidatos indígenas, e ele disputa para vice-prefeito.
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Na eleição anterior, nenhum indígena foi eleito. Lideranças afirmam que a compra de votos acaba por dividir os eleitores. Desta vez, dos 63 candidatos a vereador, 28 se declararam indígenas.
A Xanadú é a maior de 110 fazendas que pertenciam a não indígenas retirados da área demarcada no acordo firmado no fim dos anos 1990 em que os nativos deram como contrapartida autorização para instalar as torres do Linhão de Guri dentro da área. Os indígenas já eram colocados para trabalhar nas fazendas pelos antigos posseiros e assumiram o comando dos negócios quando ganharam as propriedades, nos idos dos anos 2000.
“Somos indígenas, agricultores e pecuaristas e queremos ser reconhecidos assim. Os parentes yanomamis têm que ser respeitados. Nós estamos mais aculturados, mas temos nossa cultura. Não é porque somos índios que temos que voltar a andar nus”, afirmou o gerente macuxi.
O candidato ocupado quer ‘procuração em branco para administrar’
As outras duas campanhas direcionam fogo contra Walderi. Considerado favorito, ele é acusado por opositores de despejar dinheiro nas comunidades depois que cessou as críticas que fazia ao atual prefeito, Juliano Torquato (Republicanos), para ir à disputa com o apoio da “máquina”.
Walderi se recusou a dar entrevista ao Estadão. Antes, a esposa dele, Lia Ferreira, e Paulo Camilo, coordenador de campanha, pediram uma reunião com a reportagem – com a exigência de que ocorresse sem o repórter fotográfico – para solicitar as perguntas antecipadamente. Até um consultor político de Boa Vista foi acionado para intervir. No fim, a justificativa foi a de que “a agenda está apertada demais” para ele dar satisfações à imprensa.
Na conversa de mais de uma hora, a principal preocupação da esposa foi demonstrar que Walderi tem apoio de lideranças indígenas. A mulher que é a “xerife” da campanha do marido exibiu no celular uma série de vídeos com depoimentos de indígenas subindo e descendo os indicadores, em referência ao número de urna de Walderi.
O candidato vem sofrendo desgastes por causa de um de seus principais apoiadores, o senador Hiran Gonçalves (PP-RR). O parlamentar é autor da PEC 48, que pretende colocar na Constituição a tese do marco temporal, tema que contraria interesses dos indígenas. Qualquer evolução do tema em Brasília repercute em Pacaraima com protestos.
Em um comício realizado na cidade, o candidato se colocou ao lado dos indígenas e disse que eleger um prefeito é dar uma “procuração em branco” a ele. “Quando a gente ganha uma campanha, é cada um de vocês que deposita uma confiança na gente e assina uma procuração em branco para a gente administrar para vocês”, discursou.
O lixão e o capotamento no caminho da escola
Pacaraima é um município onde os empregos giram em torno da prefeitura e do comércio, mas a informalidade é a regra. Como os estabelecimentos ficam dentro de terra indígena e em geral não têm registro, comerciantes se queixam da impossibilidade de obtenção de crédito para evolução.
Ao todo, 75% da população é beneficiada pelo Bolsa Família. Na lista de demandas apresentadas aos candidatos estão sempre unidades de saúde, escolas e estradas. As que já contam com estrutura para atendimento médico querem que as consultas e exames sejam regulares para evitarem o traslado até a sede. O frete para ir e vir pode custar R$ 100.
Nas ruas da parte central do município, a coleta de lixo é apontada como um problema central. E nele mais uma vez os indígenas aparecem como protagonistas. O descarte era feito nas imediações da comunidade Ouro Preto, colada na parte urbana. O lixão cresceu e se aproximou das portas dos moradores, que decidiram travar o acesso dos caminhões coletores.
A prefeitura se viu forçada a providenciar o envio a uma área própria do município vizinho. Ainda assim, antes das remessas o material fica provisoriamente em outro lixão no meio da cidade, perto de casas.
“Colocamos correntes e deixamos o acesso fechado 24 horas por dia para não deixar o caminhão passar. Não tínhamos condições mais de comer, o cheiro era insuportável e o lixo contaminou a nascente que usávamos”, contou Giselda Lima, tuxaua da Ouro Preto.
Na comunidade São Francisco, a escola municipal mais próxima fica a 18 quilômetros, por uma estrada esburacada. No ano passado, um acidente fez o transporte capotar e oito crianças ficaram feridas. A tuxaua Maria Francelina da Silva Neta, 39, sonha com uma unidade de ensino por ali mesmo.
Os pedidos costumam demorar demais para serem atendidos. Um imóvel para que profissionais da saúde atendam a comunidade adequadamente nas visitas esporádicas está sendo construído pelas 24 famílias que vivem no vilarejo.
“Como nossa comunidade é pequena, decidimos que todos vamos apoiar um candidato só. A prioridade para nós é uma escola”, disse.
Venezuelanos continuam chegando às centenas ao Brasil
A face mais dramática da imigração está nas tendas da Operação Acolhida montadas pelo governo brasileiro na primeira milha da fronteira. Cerca de 500 venezuelanos continuam chegando no País diariamente em busca de melhores condições de vida. Pessoas de todas as idades se aglomeram em filas para resolver a burocracia da entrada legal em esperas que podem durar mais de uma semana.
A disputa eleitoral no município não chega ao perímetro, comandado pelo Exército. Há seis anos desde o pico da crise humanitária, os políticos locais reconheceram que nada podem fazer para interromper o fluxo, que até movimenta o comércio local. No começo, o choque foi problemático. Houve uma série de protestos contra a sobrecarga na cidade e contra a criminalidade que crescia a reboque. Em 2020, moradores chegaram a fechar a fronteira.
A sobrecarga em escolas e postos de saúde brasileiros continua, mas o convívio entre brasileiros e venezuelanos faz parte da vida cotidiana dos dois lados da fronteira. Até o Pix é comum aos estrangeiros que vivem entre Pacaraima e Santa Elena de Uairén, a cidade vizinha sob a jurisdição de Maduro.
Hoje, o Exército distribui a maioria dos imigrantes para Boa Vista e para outros grandes centros. Além disso, muitos dos novos entrantes já têm familiares estabelecidos no Brasil e partem de Roraima ao encontro deles tão logo obtêm a documentação necessária. Estes trocam o abrigo da Acolhida por acomodações coletivas no centro da cidade e movimentam o comércio enquanto aguardam a papelada.
Os venezuelanos que ficaram por Pacaraima viraram mão de obra barata para serviços que os brasileiros não querem. Segundo policiais civis e militares, crimes cometidos pelos imigrantes – ao menos na fronteira – não são o maior desafio. Nesse tema, mais uma vez, são os indígenas que aparecem no primeiro plano. “Fizemos um levantamento e identificamos cerca de 150 inquéritos relacionados a estupro de vulnerável cometidos em comunidades indígenas”, disse Valdir Tomasi, o delegado da comarca há dois meses no posto.
De todo modo, Pacaraima era e continua sendo uma cidade com povos que não falam só o Português.