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Ex-chefes de Marinha e Exército ganharam salários extras ao usarem convites contestados por empresas

Ao menos três ex-dirigentes do governo de Jair Bolsonaro (PL), dois generais e um civil, apresentaram propostas de trabalho à Comissão de Ética Pública (CEP) para pedir direito ao benefício da quarentena com salários pagos por 6 meses, mas entidades não confirmam os convites de emprego; procurados, militares não se manifestaram

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Foto do author Tácio Lorran
Foto do author André Shalders
Por Tácio Lorran e André Shalders
Atualização:

BRASÍLIA - Ex-integrantes da cúpula do governo de Jair Bolsonaro (PL) ganharam da Comissão de Ética Pública (CEP) da Presidência da República direito de receber salário extra do governo por seis meses. Um dirigente civil e dois ex-comandantes das Forças Armadas tiveram o benefício da “quarentena” reconhecido pela CEP depois de apresentarem propostas de trabalho na iniciativa privada. Porém, quando procuradas pela reportagem do Estadão, as entidades não confirmaram as ofertas de emprego aos militares e ao ex-diretor. Em um caso, os valores recebidos na quarentena passam de R$ 100 mil.

As supostas propostas de emprego foram apresentadas à CEP pelo general Marco Antônio Freire Gomes, que foi Comandante do Exército de março a dezembro de 2022; e pelo almirante Almir Garnier Santos, chefe da Marinha sob Bolsonaro, de abril de 2021 até o fim do governo do capitão. O dirigente civil é o ex-diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Garigham Amarante Pinto, atual assessor da Liderança do PL na Câmara dos Deputados. Procurados, os ex-comandantes não se manifestaram. Garigham alegou que apresentou à CEP uma proposta de trabalho que recebeu para saber se tinha direito à quarentena.

O almirante Garnier Santos, ex-comandante da Marinha sob Bolsonaro Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

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Os processos de consulta à Comissão de Ética Pública foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A quarentena busca evitar que servidores do topo da hierarquia usem informações privilegiadas obtidas na função para beneficiar empresas privadas – a chamada “porta giratória”. Ministros, secretários e outros servidores graduados precisam consultar a CEP caso pretendam ir para o setor privado após sair. Se a Comissão entender que há risco de conflito de interesse, pode submeter o demissionário à quarentena. Ele ou ela fica então impedido de trabalhar na empresa privada por seis meses, mas mantém o salário de seu antigo cargo.

“A Comissão julga de acordo com os elementos que são trazidos. Se um funcionário apresenta uma proposta (de trabalho) que não existe, houve fraude. Se isso chegar à Comissão, a Comissão terá de tomar as providências necessárias para que essa fraude seja reprimida”, disse ao Estadão o presidente da CEP, o advogado Manoel Caetano Ferreira. Os ex-servidores também poderão responder por falsificação de documento, falsidade ideológica ou improbidade administrativa, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem.

O general Freire Gomes consultou a CEP em 20 de março do ano passado, três meses após deixar o comando do Exército. Informou pretender atuar como consultor de empresas que vendem produtos estratégicos para as Forças Armadas, e participar do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Blindagem (Abrablin), de quem diz ter recebido uma proposta formal. Procurada, a Abrablin negou taxativamente a oferta: “Marco Antônio Freire Gomes não faz parte do quadro da associação, bem como não houve qualquer tipo de convite ou sondagem para isso.”

O general Freire Gomes, em setembro de 2020 Foto: DIV

À CEP, o general disse que teve acesso a informações privilegiadas na área de Defesa durante o período em que ficou no Comando do Exército, bem como acesso a planos relacionados ao desenvolvimento do País, indicando, portanto, que existiria um potencial conflito de interesse caso partisse para a iniciativa privada. Fundada há mais de duas décadas, a Abrablin atua com a regulamentação e promoção do mercado de veículos blindados.

Após a decisão determinando a quarentena, em maio, Freire Gomes recebeu um pagamento de R$ 58.690,42 brutos, como civil, em junho passado. O benefício se juntou ao salário de R$ 37.792,02 que ele recebe como general da reserva.

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Processo de Freire Gomes na CEP Foto: CEP/Reproducao

Suspeito de ter apoiado uma tentativa de golpe de Estado, o almirante de esquadra Almir Garnier Santos disse, por sua vez, ter recebido uma proposta formal para trabalhar como consultor no Sindicato Nacional das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Simde). Segundo o ex-comandante da Marinha, o sindicato lhe enviou uma carta consultando-o sobre sua disponibilidade para atuar em atividades remuneradas e não remuneradas. No suposto convite apresentado à Comissão, o Simde chega a elogiar o “notório conhecimento” de Garnier sobre assuntos afetos à defesa.

Questionado pelo Estadão, o sindicato informou que “não houve contratação para o quadro de pessoal nem para prestação de serviço, especificamente pelo Simde, desde 2022 até o momento. A propósito, não há planos de contratação no futuro próximo”. O Simde é um sindicato patronal que reúne entre seus filiados mais de 170 indústrias da base industrial de defesa.

De março a junho de 2023, Garnier recebeu R$ 107.084,88 brutos, como civil, relativos ao período de quarentena. Procurada, a Marinha confirmou o pagamento do benefício. Ele já ganha R$ 35.967,57 mensais como militar da reserva.

Processo de Almir Garnier na CEP Foto: CEP/Reprodução

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Ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, o general Luiz Eduardo Ramos também relatou ter recebido uma proposta do Simde para ganhar a quarentena remunerada de seis meses. A carta-convite que Ramos teria recebido do Simde tem o mesmo teor da carta de Garnier Santos. No caso do ex-secretário-geral da Presidência, o sindicato não respondeu ao Estadão sobre ter ou não feito o convite. Após o período de quarentena, no entanto, o militar não foi trabalhar na entidade. Procurado, ele não se manifestou.

Homem de confiança de Valdemar Costa Neto, Garigham Amarante Pinto foi nomeado como diretor de Ações Educacionais do FNDE em junho de 2020. Lidava com as principais licitações do Fundo, inclusive as de ônibus escolares, realizadas anualmente pela autarquia. Em 2022, reportagem do Estadão revelou que o edital permitiria sobrepreço de até R$ 732 milhões, ao avaliar em R$ 480 mil por um modelo de ônibus que, de acordo com a área técnica do FNDE, deveria custar no máximo R$ 270,6 mil. Nos despachos, Amarante determinou o prosseguimento do processo com os preços inflados. A licitação foi suspensa pelo Tribunal de Contas da União (TCU) após as reportagens, e o edital, modificado.

Garigham Amarante (esq), com antiga equipe do FNDE em Frankfurt, na Alemanha, em 2022 Foto: Reprodução/Instagram

Amarante consultou a CEP em dezembro de 2022, pouco antes de deixar o cargo no FNDE. Ao sair do cargo, Amarante disse pretender trabalhar justamente para uma fabricante de ônibus, a Agrale, como “consultor sobre financiamento estudantil”. O processo também traz uma proposta formal de trabalho, inclusive com o CNPJ da empresa. “A contratação se daria para exercer a função de Relações Institucionais na área da Educação de Instituição de Ensino no que diz respeito aos programas Caminho da Escola e Manutenção do Transporte Escolar”, escreveu ele.

A Agrale é uma empresa fundada em 1962 e sediada em Caxias do Sul (RS), com quase mil funcionários. Procurada pela reportagem do Estadão, a companhia negou ter feito qualquer proposta. “A direção da Agrale S/A não tem ciência desse assunto. Pode estar havendo algum engano”, disse a empresa por meio da assessoria de imprensa, em e-mail enviado à reportagem no dia 13 de dezembro de 2023. Uma vez exonerado do FNDE, Garigham usufruiu da quarentena, mas por pouco tempo. Ao Estadão, a autarquia confirmou que Amarante recebeu a “remuneração compensatória” correspondente ao período de 1º a 10 de janeiro de 2023, quando foi então nomeado para um cargo de assessor na Câmara dos Deputados.

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Trecho do processo de Garigham Amarante na CEP Foto: CEP / Reprodução

Procurado, Garigham não comentou a resposta da Agrale. “Solicitei à Comissão de Ética Pública análise sobre eventual incompatibilidade [com] o novo trabalho que tinha em vista na iniciativa privada”, relatou, sem falar especificamente da suposta proposta de trabalho.

“A gente cuida o máximo para evitar essa fraude, para que as propostas sejam reais. No fim do ano agora teve mais de um caso em que nós suspendemos o julgamento para pedir para a empresa que confirmasse se a proposta existia. Em tese, a lei permite, dependendo do nível da autoridade, até uma proposta que não seja formal (...). Mas na maioria dos casos a gente exige uma proposta formal para evitar fraudes como estas. Se existiu casos como estes (...), houve uma fraude que nós temos que reprimir”, diz Manoel Caetano Ferreira Filho, o presidente da CEP.

Segundo Ferreira Filho, os servidores podem ter de devolver o dinheiro. A CEP também poderá remeter os documentos do caso para o Ministério Público Federal, para apurar possíveis crimes, como o de falsidade ideológica.

Falando em tese e sem conhecer os nomes envolvidos, o advogado criminalista e doutor em Direito Victor Quintiere explica que o caso pode ser enquadrado tanto como falsidade ideológica, com pena de 1 a 3 anos, quanto como falsificação de documento particular, com pena de 1 a 5 anos. Em ambos os casos, é preciso que haja dolo, isto é, a intenção de cometer a fraude. A tipificação penal dependerá das especificidades de cada caso, diz Quintiere, que é também professor universitário.

Ao mesmo tempo em que concedeu quarentena remunerada a servidores que apresentaram propostas de trabalho fictícias, a Comissão de Ética Pública liberou ministros do governo de Jair Bolsonaro para exercerem de imediato atividades em empresas da iniciativa privada que mantêm relação com seus antigos cargos, conforme revelou o Estadão. O colegiado, na época totalmente controlado por indicados do ex-presidente, dispensou da quarentena o ex-ministro das Comunicações Fábio Faria e o ex-advogado-Geral da União (AGU) Bruno Bianco para o BTG Pactual, e Marcelo Sampaio para a Vale, a gigante da mineração e logística. Nesses casos, o não cumprimento da quarentena é favorável para as autoridades, pois foram contratadas por grandes empresas que geralmente oferecem salários maiores que o do serviço público.