BRASÍLIA – O empresário petista Fernando Nascimento da Silva Neto está atuando nos bastidores de Brasília para assumir a gestão de um dos mais importantes patrimônios das artes cênicas do Brasil. O método, porém, é problemático do início ao fim: em troca de um dos mais simbólicos palcos brasileiros, em um prédio milionário na área central da capital, ele oferece uma fazenda maior do que Florianópolis (SC) em área grilada na Amazônia que nem é dele, e cujo proprietário no papel nega acerto com o empresário, que também é dirigente do PT na cidade de Brasília.
Procurado, Fernando Neto não explicou o porquê da fazenda irregular como garantia do negócio e negou ter feito a proposta dizendo que “nada foi ofertado”, o que não é verdade. A reportagem teve acesso à minuta do contrato negociado por ele. (leia mais abaixo).
A cobiça do petista é pela Fundação Brasileira de Teatro (FBT), criada nos anos 1950 por Dulcina de Moraes, atriz eternizada como uma heroína da pátria ao lado de figuras como Machado de Assis, Tiradentes, Heitor Villa-Lobos, Santos Dumont, Zumbi dos Palmares e José de Anchieta. A lista de assinaturas da criação da entidade tem o autógrafo de ícones da arte como Bibi Ferreira, Paulo Autran, Tônia Carreira, Yara Salles, Conchita e Átila de Moraes.

A atriz Fernanda Montenegro, em diversas oportunidades, referiu-se a Dulcina de Moraes como “a figura mais importante do teatro brasileiro no século XX” e lamentou a morte na pobreza e no esquecimento da mulher conhecida pela qualidade técnica no ofício e pela defesa da arte e dos artistas.
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Apesar da importância histórica e cultural da FBT, a entidade tem realidade fiscal e orçamentária de completa penúria. A má gestão e uma série de fraudes e desvios praticados por gestões que se sucederam levaram o projeto de Dulcina à beira da falência. Por se tratar de uma fundação privada de utilidade pública federal, a situação é supervisionada pela Promotoria de Justiça de Tutela das Fundações e Entidades de Interesse Social do Ministério Público do Distrito Federal (MPDF).
As dívidas da FBT passam da casa dos R$ 40 milhões, entre trabalhistas e fiscais. Em tratativas para se abater parte do débito, até o Planalto e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) se mobilizaram para rascunhar soluções em favor da entidade, que guarda páginas preciosas da história do teatro no Brasil. O espaço foi descrito assim nas páginas do Estadão, em 1980: “o teatro, de linhas modernas, conta com 506 poltronas e uma estrutura de palco capaz de suportar qualquer tipo de montagem, o que significa para Brasília a primeira grande abertura em termos de teatro profissional”.

Nada foi à frente e o encerramento definitivo da Fundação, com absorção do patrimônio pela União, virou uma possibilidade concreta. Seria o enterro do sonho da atriz que no início dos anos 1970 vendeu seu teatro e sua casa no Rio de Janeiro, mudou-se para Brasília e doou todo o dinheiro para a construção do edifício que até hoje abriga a Fundação e o Teatro Dulcina, a pouco mais de um quilômetro da Esplanada dos Ministérios.
Mas aí surgiu o empresário petista Fernando Neto vislumbrando uma oportunidade de negócio. O prédio está em uma zona de movimentação intensa e desperta o interesse do mercado imobiliário. Toda a estrutura do prédio, hoje, é avaliada em pelo menos R$ 15 milhões, segundo algumas estimativas.
A investida do petista se dá, mais uma vez, por meio do Atualbank. Como revelou o Estadão, o banco não é banco, usa um lastro bilionário falso, passou pelas mãos de um laranja e tem por trás da operação um condenado por estelionato no Mato Grosso. A empresa entrou na mira da Polícia Civil de São Paulo e da Polícia Federal. Com o prestígio de quem foi procurador do ex-ministro José Dirceu de 2018 a 2023, Fernando ganhou acesso a ministérios e ao Palácio do Planalto, e gosta de se exibir ao lado de governistas, centrão e até de opositores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Nos últimos meses, Fernando já vem tratando publicamente de planos para o prédio. O plano anunciado por ele é assumir as dívidas da FBT e explorar as possibilidades culturais e econômicas do espaço. Como garantia, oferece a Fazenda Água Branca, em Novo Aripuanã (AM), de 96 mil hectares. Para efeito comparativo, o tamanho equivale a pouco mais da metade de toda a cidade de São Paulo dentro da floresta amazônica e é maior do que a área da capital de Santa Catarina.
A reportagem perguntou ao empresário que aparece oficialmente como o dono da propriedade como se deu o relacionamento com o banco. Ele disse que não sabe de nada disso. “Nunca fiz nada com esse banco, nada. Não tenho conhecimento disso não [da propriedade como garantia em operação para assumir a FBT], de jeito nenhum. Você me deixou assustado agora”, afirmou Valmir Martins de Paula ao Estadão.

Além de localizar o dono, o Estadão cruzou informações georreferenciadas da propriedade e de unidades de conservação, e consultou técnicos e órgãos ambientais. A conclusão é a de que a fazenda é irregular por estar dentro da Floresta Estadual Aripuanã e da Reserva Extrativista Guariba. Tão logo o órgão ambiental do Amazonas tomou conhecimento dos fatos determinou a suspensão do cadastro da propriedade.

A reportagem também enviou os achados ao promotor de Justiça Evandro Gomes, responsável pelos processos da FBT em Brasília. O membro do MPDF manifestou preocupação com os apontamentos. Ele contou que chegou a receber Fernando, do Atualbank, para uma reunião sobre o futuro da entidade e que, nesse encontro, o empresário reiterou que a fazenda seria a garantia do contrato de gestão.
“O banco disse estar disposto a assumir as dívidas, manter teatro e a faculdade. Ele disse que dar uma cara cultural à entidade compensaria os gastos. Mas preciso ver na prática. Me apresentaram um projeto bem incipiente. Falei que era pouco e ficaram de voltar”, relatou.
Fernando Neto vem há meses em negociações diretas com a direção da FBT. O atual presidente da Fundação, Gilberto Rios, confirmou uma série de reuniões com o empresário, que tem espalhado em Brasília que inevitavelmente a gestão do Teatro Dulcina será dele. Mas qualquer mudança no controle da entidade depende do Ministério Público do DF, ainda que a diretoria da Fundação decida.
“Isso só vai ser concretizado se eu der o meu ‘ok’. A FBT mexe com muita coisa, tem um peso simbólico. Um contrato com o banco apareceu como opção, a ideia me parecia boa. A garantia que me deram foi a Fazenda Água Branca, no Amazonas. Mas a garantia é viável ou para tentar resolver o problema vou criar um maior? Vou analisar tudo com muito calma. Temos que entregar a Fundação para alguém que pelo menos pareça honesto”, disse o promotor Evandro Gomes.
Procurado, Gilberto Rios disse que não tinha conhecimento sobre as suspeitas em torno da fazenda usada como garantia e declarou que a análise final caberia à área jurídica. O dirigente também ponderou que as irregularidades na constituição e no funcionamento do banco apontadas pela reportagem colocaram “um elefante atrás da orelha” dele, mas mesmo assim ele optou por continuar as tratativas.
Responsável pelo setor jurídico, o advogado Claodemir Balotin afirmou que desconhecia as suspeitas, mas que elas serão analisadas internamente. Ele contou ainda que, em dado momento da negociação, Fernando Neto chegou a dizer que a fazenda apresentada como garantia podia ser substituída por outro imóvel.
De quem é e onde está a Fazenda Água Branca?
A fazenda Água Branca está registrada na região de Manicoré, entre os municípios de Novo Aripuanã (AM) e Apuí (AM), na divisa com o Mato Grosso. As cercanias vêm sofrendo com a grilagem de terras voltada a criação de gado e a projetos irregulares de geração de créditos de carbono. A suposta propriedade é um retângulo de 96 mil hectares totalmente sobrepostos a duas unidades de conservação e limítrofes à terra indígena Kawahiva do Rio Pardo, onde vivem povos isolados.
Em nota, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), ligado ao governo do Estado, informou que suspendeu o chamado Cadastro Ambiental Rural (CAR) da propriedade por detectar indícios de informações falsas no registro. O documento é autodeclaratório, para controle de bens naturais sobre os solos, mas tem sido usado indevidamente para simulação de posse de terras.
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“Diante da identificação de sobreposição da Fazenda Água Branca com áreas destinadas à proteção, conservação ambiental e uso de comunidades tradicionais, foi realizada a suspensão do CAR declarado. Essa medida decorre da constatação de indícios de informações falsas ou enganosas em imóveis rurais registrados no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar)”, destacou.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) também detectou indícios de irregularidades e informou que o registro da fazenda foi barrado. “O imóvel foi cadastrado em 2021, mas teve o cadastro inibido, o que não permite a emissão do CCIR (Certificado de Cadastro de Imóvel Rural), até que apresente o título original emitido pelo estado do Amazonas. O CAR da área em questão está sobreposta a unidades de conservação”, informou.
O proprietário Valmir Martins de Paula diz que a fazenda não é irregular porque ele está dentro da área desde 2001. Contudo, conforme os documentos oficiais, o título da área teria sido emitido em 2014. A Floresta Aripuanã foi legalmente criada em 2005. A reserva Guariba-Roosevelt é de 1996.
Quem foi Dulcina de Moraes e por que ela é uma heroína da pátria?
Dulcina de Moraes nasceu no Rio de Janeiro, em 1908, e dedicou a vida às artes e ao teatro. Foi uma das artistas que marcaram o século XX tanto pela qualidade do seu trabalho quanto pela luta em favor do reconhecimentos dos artistas como trabalhadores numa época em que essa classe profissional era fortemente marginalizada.
Dulcina faleceu em 1996, em Brasília, onde viveu reclusa nos últimos momentos de vida. A diva do teatro nacional tinha uma preocupação com a descoberta e com a formação de novos atores. Neste sentido, a Fundação Brasileira de Teatro, criada em 1955, no Rio de Janeiro, é considerada uma de suas maiores realizações.

Em 1972, ela vendeu seu patrimônio no Rio e mudou-se para Brasília, para onde transferiu a Fundação e a instalou em um prédio que tem esboço arquitetônico de Oscar Niemeyer. A estrutura está no Setor de Diversões Sul, no Conic, próximo à Rodoviária do Plano Piloto e da Esplanada dos Ministérios, em situação de abandono.
Em 2023, o presidente da República em exercício, Geraldo Alckmin, sancionou a Lei 14.743/23, que inscreveu o nome de Dulcina de Moras no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
A iniciativa foi debatida e aprovada pelo Congresso Nacional a partir de um projeto apresentado em 2020 pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ). “Dulcina de Moraes dedicou a vida à profissionalização da categoria artística do teatro, lutando pelos direitos e pela dignidade dos profissionais”, justificava a proposta.
O Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria é um documento que preserva nomes de figuras que marcaram a História do Brasil. Ele existe fisicamente e fica no Panteão da Pátria, na praça dos Três Poderes, em Brasília.
Qual a relação do ‘banqueiro’ com José Dirceu?
Filiado ao PT desde 2004, Fernando Nascimento Silva Neto ocupou cargos de indicação política e foi procurador do ex-ministro José Dirceu (PT) por cinco anos, de 2018 a 2023. Ex-membro do diretório do DF, participou ativamente do processo eleitoral nacional do partido, em 2019. Dirceu, por meio da assessoria, reafirma ter cortado vínculos com o empresário.

A ascensão de Fernando Neto em Brasília coincide com o período em que ele ganhou das mãos de José Dirceu, em maio de 2018, uma procuração para representar o ex-ministro “em quaisquer repartições públicas federais, estaduais e municipais, inclusive no Ministério da Justiça, na Câmara e no Senado”, podendo nelas “requerer, alegar e assinar o que necessário for”.

O documento foi assinado na véspera do dia em que Dirceu se entregou à Polícia Federal para cumprir pena no âmbito da Lava Jato. Fernando Neto gozava da estrita confiança do ex-ministro e era uma espécie de “faz-tudo”.
Procurada novamente, a assessoria do ex-ministro reafirmou que a revogação da procuração se deu depois de Dirceu “tomar conhecimento de indícios de que Neto estaria falando em seu nome”, sem detalhar as circunstâncias do rompimento.
Fernando Neto não explicou como se deu a escolha da fazenda irregular para a garantia da negociação. Disse que só estudava formas de solucionar a dívida “de valor altíssimo” da entidade, mas que “nada foi ofertado”.
Ao contrário do que ele diz, uma proposta foi formalizada por ele à FBT. A reportagem teve acesso à minuta. Além disso, o empresário tratou pessoalmente sobre o tema com o Ministério Público.
Ele também afirmou que, após as reportagens do Estadão sobre o Atualbank, publicada em 31 de agosto do ano passado, a empresa paralisou as atividades. Entretanto, a minuta do contrato tem data de 18 de outubro de 2024 e o presidente da FBT contou que vinha fazendo reuniões periódicas com Fernando Neto. A última foi na semana passada.