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‘Existe resiliência muito grande do bolsonarismo’, avalia cientista político

Em entrevista ao ‘Estadão’, Miguel Lago afirma que, sem Jair Bolsonaro no poder, extrema direita brasileira deve se fragmentar, mas não necessariamente perder força

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Foto do author Davi Medeiros
Por Davi Medeiros e Eduardo Kattah
Atualização:
Entrevista comMiguel LagoCientista político e professor da School of International and Public Affairs da Universidade de Columbia

O cientista político Miguel Lago enxerga uma “resiliência muito grande do bolsonarismo” mesmo com a saída de Jair Bolsonaro da Presidência da República. Para ele, a capacidade de mobilização dos apoiadores não depende da máquina pública, mas essencialmente da atuação do ex-presidente no papel de líder oposicionista. “Sem o Bolsonaro, o bolsonarismo se fragmenta”, afirmou Lago, durante entrevista ao Estadão.

Estudioso da convergência entre políticas de saúde, tecnologia e democracia, ele lançou recentemente o livro Do que falamos quando falamos de populismo (Editora Companhia das Letras) junto com o também cientista político Thomás Zicman de Barros – um ensaio no qual os dois investigam os diferentes significados que o termo adquiriu ao longo da história e como ele está inserido no atual cenário e no debate político do País.

Bolsonaro é o fenômeno aglutinador da extrema direita brasileira, diz Miguel Lago. Foto: Melanie Stetson Freeman/CSM

Lago, que é professor da School of International and Public Affairs da Universidade de Columbia e da École d’Affaires Publiques de Sciences Po Paris, avalia que tanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quanto Bolsonaro “dividem a sociedade entre povo e elite, o povo sendo uma coisa boa e a elite, uma coisa ruim”. A seguir os principais trechos da entrevista:

Bolsonaro perdeu a eleição por margem pequena de votos. O bolsonarismo se tornou nestes últimos quatro anos uma força política real. Vai perder oxigênio sem o poder?

Eu acho que não. Existe uma resiliência muito grande do bolsonarismo. Acho que realmente ele conseguiu algo extraordinário, que foi conquistar corações e mentes na sociedade. O bolsonarismo é uma força muito grande. Bolsonaro conseguiu ideologizar grande parte da sociedade brasileira, e isso é um feito único na nossa história. Claro, não tendo o governo, você perde muito da sua capacidade de pautar, vai ser difícil o bolsonarismo aprender a pautar estando na oposição. O governo é que pauta. Em termos de mobilização, vai haver um desafio grande para o bolsonarismo. Mas eu não acho, sinceramente, que seja um movimento que tivesse a sua força unicamente pelo fato de ser Estado, pelo fato de ser governo. A capacidade de mobilização não depende da máquina pública.

Bolsonaro tem atributos e meios para se manter como principal líder da oposição ao novo governo?

Sem o Bolsonaro, o bolsonarismo se fragmenta. Ele é o fenômeno aglutinador do bolsonarismo. Sem ele, a extrema direita vai se fragmentar em algumas extremas direitas.

A “máquina” de comunicação de Bolsonaro deixa algum tipo de legado para a forma como se faz política no Brasil? É possível o próximo governo se apropriar dessa estratégia?

Lula teria todas as condições, mas eu acho que a própria montagem de governo mostra que não, que ele não está aprendendo com essa forma de fazer política. Tem um elemento aí, que o Bolsonaro soube usar justamente sua força eleitoral como uma maneira de não ceder a certas pressões político-partidárias. O Lula, pela montagem dos ministérios e a entrega de pastas importantes e absolutamente estratégicas nas mãos de partidos completamente descompromissados com o futuro do País, está recorrendo ao presidencialismo de coalizão que a gente sempre viu, muito mais do que um governo do PT. Vários ministérios estratégicos foram entregues por uma questão de loteamento político.

Lula discursa contra as “elites” e evoca uma dicotomia entre povo e “mercado”. Bolsonaro termina o seu governo recorrendo ao populismo. Quais características sobrepõem os dois nesse conceito?

Existem algumas características, mínimos denominadores comuns do que seria o populismo. Um deles é essa dicotomia de divisão da sociedade entre povo e elite, isso é constante. Tanto Lula quanto Bolsonaro dividem a sociedade entre povo e elite, o povo sendo uma coisa boa e a elite, uma coisa ruim. Só que as elites que o Bolsonaro denuncia são, na realidade, as elites intelectuais, culturais e administrativas. Para Bolsonaro, o povo é quem é ‘cidadão de bem’ nos moldes dele, e tudo que não é cidadão de bem seriam as elites, os maus. Os dois são populistas, mas com graus diferentes, e a significação do que é povo e elite é muito diferente.

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O ambiente virtual impulsiona o populismo?

Totalmente. O populismo é uma lógica política de mobilização da sociedade. Você mobiliza a partir de um antagonismo, de uma rivalidade. O ambiente virtual favorece algumas construções narrativas do bolsonarismo mais popular. As redes sociais têm uma arquitetura de sociabilidade e maneira de comunicar e interagir que favorecem discursos sensacionalistas, mensagens curtas e potentes. É uma grande fragmentação de perfil, e a maneira de se conectar com outros perfis seria através de um influenciador. O influenciador desempenha um tipo de engajamento com seus seguidores que se parece com o que seria uma liderança populista. As redes sociais catapultam influenciadores para a política e, portanto, fortalecem uma lógica populista.

O sr. defende que o Brasil vive uma revolução cultural que molda as opções e escolhas políticas nos últimos 20 anos. É um processo em curso ou consolidado? Que alerta essa revolução traz para o futuro governo de Lula e do PT?

Está em curso. O bolsonarismo conseguiu encarnar essa revolução social e cultural, por isso acho que Bolsonaro como candidato estava muito mais atualizado com essas mudanças na sociedade brasileira do que a candidatura do Lula. Outras forças políticas, desde a direita democrática até o centro e a esquerda, não conseguiram captar o que a extrema direita de Bolsonaro conseguiu captar na sociedade brasileira e se conectar com isso. Tem muito a ver com uma mudança de perfil religioso, os evangélicos são minoria do ponto de vista estatístico, mas maioria do ponto de vista político. O deputado católico não é comparável a um deputado evangélico pastor. Os neopentecostais ditam grande parte da vida política, hábitos de consumo e disciplinares de maneira que outras igrejas não fazem. Esse é um elemento absolutamente fundamental porque ele é cultural, não religioso. Bolsonaro captou isso como ninguém. Ele identificou esse processo dando ministérios inteiros para essas denominações e passou a significar seus atos como presidente a partir de uma leitura neopentecostal da Bíblia, foi uma inserção da cultura religiosa na política como nunca havia se visto antes.

Muitos defendem que Lula e o PT deveriam apostar em um governo de transição. Qual a chance de o futuro governo se consolidar realmente como um governo “menos petista”?

O governo é menos petista do que se tem falado. Ele não é resultado das forças que apoiaram Lula para ganhar as eleições. Grande parte do PSDB, do Cidadania e partidos que apoiaram Lula no segundo turno não tiveram reconhecimento, no entanto o União Brasil, que na maioria dos Estados estava fechado com Bolsonaro, recebeu (ministério). Essa aliança ministerial responde muito mais aos anseios de governabilidade do que, necessariamente, à frente ampla que se construiu. Grandes figuras do PT não entraram nesses ministérios e tinham essa expectativa, e certamente vai haver tensões no próprio partido ao longo do governo. Claro que houve a correta decisão de chamar Simone Tebet e Marina Silva. É um governo muito menos petista do que o primeiro governo do Lula.

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