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‘Fragilizar Lei de Estatais é bandeira de políticos retrógrados’, diz ex-diretor da Petrobras

Marcelo Zenkner diz que medida favorece a corrupção e vai na contramão das melhores práticas internacionais

Foto do author Luiz Vassallo
Por Eduardo Kattah e Luiz Vassallo
Foto: Estadão
Entrevista com Marcelo ZenknerEx-promotor de Justiça e ex-diretor de Governança da Petrobras

Em fevereiro de 2021, quando deixou a Diretoria de Governança e Conformidade da Petrobras, Marcelo Zenkner alertou para “sinais concretos” de interferências do governo em sua área. Ex-promotor de Justiça no Espírito Santo, ele entende que seu receio se confirmou. A Petrobras mudou quatro vezes de CEOs em quinze meses, no governo Jair Bolsonaro.

Neste mês, a Câmara aprovou uma mudança na Lei das Estatais que reduziu de 36 meses para apenas 30 dias a quarentena para políticos ocuparem diretorias das empresas – a medida ainda será analisada pelo Senado. Ao Estadão, ele afirmou que a mudança permite que a “erva daninha da corrupção” encontre “terreno fértil para brotar, crescer e debilitar” as estatais. Abaixo, leia os principais trechos da entrevista.

Ex-diretor de Governança e Conformidade da Petrobras, Marcelo Zenkner falou sobre a Lei das Estatais e a corrupção no poder público. Foto: Gabriel Lordello/Estadão

Há quase dois anos o sr. deixou a Diretoria Executiva de Governança e Conformidade da Petrobras alertando para riscos ao sistema de integridade e para os “pilares da independência e autonomia da empresa”. Esses pilares foram comprometidos pela gestão política?

Quando optei por não renovar meu mandato, ainda no início do ano passado, já havia sinais bastante concretos de tentativas de interferência do acionista majoritário na governança da Petrobras, o que, à época, já não era admissível. Essa minha percepção, ao longo dos últimos dois anos, infelizmente se concretizou repetidas vezes. Basta lembrar as insistentes trocas de CEO’s – foram 4 em apenas 15 meses –, as quais eram sempre justificadas pela necessidade de redução dos preços dos combustíveis no Brasil. Um dos CEO’s indicados teve, inclusive, sua experiência profissional e sua formação acadêmica questionadas pelo Comitê de Elegibilidade à luz dos requisitos mínimos exigidos pela Lei das Estatais e pelo Estatuto Social da Petrobras. Houve, ainda, a indicação e eleição de dois conselheiros considerados impedidos pela legislação em vigor. Aliás, o Conselho de Administração da Petrobras, que havia confirmado esses impedimentos, retirou os nomes do boletim de voto ao convocar a assembleia geral de acionistas. Ainda assim, em agosto deste ano, durante a realização da assembleia, a União sobrepassou os impedimentos e insistiu na eleição desses candidatos explicitamente conflitados. Isso viola frontalmente a primeira diretriz da OCDE sobre governança corporativa em empresas estatais, a qual estabelece que os conselhos devem ser compostos de forma que possam exercer um julgamento objetivo e independente, além do que devem ser totalmente desvinculados dos mais altos níveis de governo e nomeados com base em méritos profissionais. Não bastasse tudo isso, ainda foram noticiadas constantes ameaças de troca de diretores, não por desempenho ou capacidade técnica, mas por não demonstrarem lealdade política ao governo. Vale recordar, inclusive, a substituição do diretor de Tecnologia e Transformação Digital às vésperas das eleições presidenciais, sem qualquer justificativa técnica.

Como avalia a disposição do futuro governo Lula em flexibilizar a Lei das Estatais?

Com enorme preocupação, pois segue na contramão das melhores práticas internacionais. A segunda diretiva da OCDE sobre políticas anticorrupção e integridade nas empresas estatais, por exemplo, recomenda que os governos se abstenham de intervir indevidamente nas operações ou de controlar diretamente a gestão das empresas públicas e as sociedades de economia mista. Essa manobra não é nova no Brasil e houve até uma tentativa do atual governo de alterar a lei, o que causaria reflexos diretos nos estatutos das empresas estatais, os quais não podem destoar dos preceitos legais. Agora, talvez se valendo da força política que todo chefe do Executivo recém-eleito possui, a história se repete com mais intensidade. Isso bem demonstra que a fragilização das regras de governança previstas na Lei das Estatais não é uma bandeira de direita ou de esquerda, mas sim de políticos retrógrados que pretendem fazer das empresas estatais um espaço de acomodação de seus aliados. Ocupar os cargos da alta administração das estatais com atores políticos significa orientá-las para a produção de resultados que atendam interesses político-partidários a curto prazo, no máximo em quatro anos. Isso se choca completamente com a visão moderna de empresas de impacto positivo, as quais buscam o lucro oferecendo soluções para os problemas da sociedade, melhoram o bem-estar das pessoas e adotam uma visão de longo prazo na geração de valor. Como a governança das empresas estatais brasileiras estabelecida em lei procura seguir as diretivas do Conselho da OCDE, caso o Brasil tenha mesmo a intenção de se tornar um país membro dessa importante organização para acelerar o seu desenvolvimento econômico e social, não pode, em hipótese alguma, se desviar das boas práticas internacionais.

“A fragilização das regras de governança previstas na Lei das Estatais não é uma bandeira de direita ou de esquerda, mas sim de políticos retrógrados que pretendem fazer das empresas estatais um espaço de acomodação de seus aliados”

Qual o impacto da remoção de marcos jurídicos que garantam o funcionamento de empresas públicas e de sociedades de economia mista? Não é uma contradição com o discurso do PT e da esquerda de valorização das estatais do País?

Em primeiro lugar, esse movimento coloca em risco o próprio Estado Democrático de Direito, à medida em que mistura os interesses das empresas estatais com os interesses da classe política, abrindo espaço para abusos e para a corrupção. Empresas, públicas ou privadas, precisam ser comandadas de maneira independente e autônoma por pessoas íntegras e com perfil técnico-gerencial compatível com suas respectivas diretorias executivas e seus conselhos. É assim que elas irão crescer, atrair investimentos, oferecer empregos, gerar lucros e recolher cada vez mais impostos, o que favorece a população e, em última análise, também o próprio governo. O modelo oposto já se mostrou na prática totalmente fracassado, quase levando a maior empresa do Brasil à bancarrota. Ouvi uma entrevista de um importante integrante do futuro governo dizendo que basta a existência de uma área de controles internos com um responsável capaz para que se evite a corrupção nas estatais, o que não é verdade. O compliance corporativo verdadeiro e robusto começa pelo compromisso e o patrocínio da alta administração em relação às medidas de proteção empresarial que serão implementadas. Assim, se as posições da alta administração (diretoria executiva e conselho) forem preenchidas por apaniguados políticos sem conhecimento técnico e/ou mal intencionados, o compliance officer jamais terá espaço para exercer o seu papel, pois será sabotado, atropelado ou ficará isolado até renunciar ao cargo. Com isso, a erva daninha da corrupção encontrará terreno fértil para brotar, crescer e debilitar a empresa estatal. O trabalho que foi realizado na Petrobras só foi possível porque eu contava, à época, com o apoio integral do Conselho de Administração.

Defensores da operação Lava Jato avaliam que ela foi enterrada. O ex-governador do Rio Sérgio Cabral, o último preso da operação, deixou a prisão no início da semana. O que esperar do próximo Executivo federal já que o histórico no tema corrupção é manchado por dois escândalos (mensalão e petrolão)?

Em verdade a Operação Lava Jato jamais foi concebida como uma política anticorrupção definitiva dos órgãos de controle e, por isso, é natural que ela chegasse ao final em um determinado momento. O que me incomoda é perceber que as autoridades públicas brasileiras ainda insistem em um modelo repressivo de enfrentamento à corrupção, o qual, isoladamente implementado, já se mostrou completamente ineficaz para essa finalidade. É uma ilusão acreditar que corruptos ficarão eternamente na cadeia ou que voltarão purificados do cárcere. Nesse modelo, ainda que venham a ser afastados dos cargos, eles apenas serão substituídos por outros corruptos que estão apenas esperando a sua oportunidade. Para piorar, muitas vezes ainda vemos os acusadores, que empenharam enorme esforço pessoal, sendo, ao final, injustamente punidos, em uma inversão total de valores. Por isso, é fundamental a realização de um trabalho preventivo de disseminação da cultura de integridade pública e, nessa linha, acredito e defendo a implementação de sistemas de integridade públicos e corporativos como políticas de estado, e não de governo. Já demos passos importantes nesse sentido nos últimos dez anos com a Lei Anticorrupção Empresarial, a Lei das Estatais e com os decretos que tratam da governança pública e dos sistemas de integridade públicos. Assim, mesmo diante de um cenário desanimador, eu prefiro, como dizia Desmond Tutu, ser um prisioneiro da esperança e continuar trabalhando para que nosso sistema preventivo seja devidamente aprimorado.

O ingresso do ex-juiz Sérgio Moro e do ex-procurador Deltan Dallagnol na política partidária não ajudou a desvirtuar a operação do ponto de vista republicano?

É importante dizer que qualquer pessoa de qualquer profissão não só pode como deve participar da política, pois esse é o verdadeiro sentido do exercício da cidadania plena. Em um ambiente político saudável, um movimento nesse sentido de Magistrados e Membros do Ministério Público pode ser recepcionado de maneira natural. Rudolph Giuliani, por exemplo, foi um promotor que ganhou grande notoriedade nos Estados Unidos ao enfrentar a máfia de Nova Iorque e, posteriormente, se tornou prefeito daquela mesma cidade, com uma gestão profundamente elogiada. O próprio futuro ministro da Justiça, que por duas vezes governou o Maranhão, é um ex-juiz federal e não me lembro de essa condição pessoal ter sido contestada em algum momento. O problema é que vivemos no Brasil uma violentíssima polarização política e, assim, a opção dos expoentes da Lava Jato por um dos lados, por óbvio, acabou fortalecendo a narrativa previamente existente de que a operação realmente era um movimento antiesquerda ou direcionado contra uma determinada pessoa. Isso, sem dúvida nenhuma, não apenas abalou a reputação das autoridades públicas no exterior, como também enfraqueceu, de modo geral, o movimento anticorrupção no Brasil, o qual, por muitos anos, ainda será visto com desconfiança pela população. Isso não significa, entretanto, que a corrupção endêmica e institucionalizada não existiu e, por essa razão, é fundamental que os grupos que defendem as prerrogativas dos advogados dialoguem com as organizações que lutam contra a impunidade em prol de um interesse comum que é a Justiça.

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Como avalia a decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou inconstitucional o orçamento secreto?

A expressão “orçamento secreto” já é contraditória por si própria, pois o orçamento é, por definição, o instrumento que detalha, anualmente, a maneira pela qual os recursos públicos serão destinados e aplicados. Assim, se há alguma reserva em torno do conhecimento, por qualquer cidadão, da forma como essa atividade administrativa ocorrerá, todos os princípios informadores da Administração Pública previstos na Constituição – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência – estarão violados. Quanto mais transparente for a ação estatal, mais íntegra ela será e menor será a chance de ocorrência de casos de corrupção. E a recíproca também é verdadeira, tanto que o orçamento secreto proporcionou aberrações como o pagamento de mais de 540 mil extrações dentárias em um município do interior do Maranhão de apenas 39 mil habitantes. Isso significa a extração de 14 dentes de cada cidadão da cidade, o que, por óbvio, constitui um fortíssimo indicativo de fraude. A inconstitucionalidade, portanto, é mais do que evidente e deveria ter sido reconhecida desde o ano passado, já que essa matéria foi levada ao STF em 2021. O fato é que a falta de tempestividade na prestação jurisdicional acabou criando um terreno fértil para a corrupção e até mesmo a democracia foi colocada em risco.

“Quanto mais transparente for a ação estatal, mais íntegra ela será e menor será a chance de ocorrência de casos de corrupção”

Em fevereiro deste ano, a ministra Rosa Weber pediu vista sobre uma ação trabalhista contra a Petrobras que pode causar um prejuízo de 47 bilhões. Este rombo já está precificado? Ele representa um erro de gestão? Qual é o risco para a empresa caso ele seja mesmo realizado? E qual é o impacto em termos de segurança jurídica para a Petrobras deste julgamento que se arrasta sem conclusão?

Esse caso sempre foi bastante rumoroso, mas, em verdade, é fruto de uma certa incompreensão de alguns magistrados ao interpretar uma cláusula do acordo coletivo que estabeleceu a política remuneratória da Petrobras. Felizmente, o STF está colocando fim a essa dúvida interpretativa, pois, no julgamento em andamento, já há três votos em favor da tese defendida pela empresa. Após o voto da ministra Rosa Weber, a questão será encerrada e, por isso, o risco de um resultado desfavorável é muito baixo. Caso isso venha ocorrer, o que, sinceramente, não acredito, a Petrobras teria que arcar com um passivo de aproximadamente 54 bilhões de reais e ainda terá que suportar um incremento nas futuras folhas de pagamento de 2 bilhões de reais ao ano. Seria uma verdadeira tragédia, pois recursos previstos para projetos de impulsionamento da economia nacional, com geração de empregos, pagamento de tributos e participações governamentais, acabariam sendo revertidos para pagar empregados que nem fazem mais parte dos quadros da companhia. Pelo bem da Petrobras e do nosso país, espero que o STF confirme o verdadeiro sentido dessa cláusula coletiva e que está em vigor há mais de 16 anos, pois, caso contrário, haverá uma enorme insegurança jurídica.

Essa questão é realmente importante e deve ser analisada até mesmo de maneira mais ampla, pois muitos executivos também são convidados para ocupar temporariamente cargos públicos que guardam vinculação direta com a atividade das empresas nas quais eles anteriormente trabalhavam. Por isso, a gestão dos conflitos de interesses deve ser realizada no âmbito de um sistema público de integridade, que possui a lealdade como um de seus principais vetores. No caso de migração do Poder Público para a iniciativa privada, o conflito de interesses pode ainda restar caracterizado no período de até 6 meses após o agente público deixar o cargo, conforme estabelece a Lei de Conflito de Interesses. Se configurada a hipótese, poderá haver responsabilização para a pessoa individualmente considerada por improbidade administrativa e, dependendo do caso, até mesmo para a empresa que a abrigou à luz da Lei Anticorrupção Empresarial. A falha estrutural que reconheço nessa lei é no sentido de ela ser aplicável apenas a agentes públicos federais, quando, na verdade, ela deveria alcançar também agentes públicos estaduais e municipais.

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