Lorena Ferrari Auarek, Graduanda em Ciências Econômicas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Colaboradora do Observatório das Desigualdades
Bruno Lazzarotti Diniz Costa, Doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor e Pesquisador da Fundação João Pinheiro. Coordenador do Observatório das Desigualdades
Um dos chavões mais repetidos nos debates sobre políticas sociais é a analogia que indica uma suposta oposição entre "dar o peixe ou ensinar a pescar", sempre sacada para desqualificar as políticas de assistência social em específico, mas muito frequentemente também as políticas distributivas e mesmo redistributivas em geral. Apesar de sua popularidade, é uma péssima analogia, por vários motivos. O primeiro, e óbvio, é que tem supostos totalmente irrealistas: todos podem se dedicar igualmente a aprender a pescaria, todos têm recursos iguais e suficientes para adquirir varas e iscas, todos têm igual acesso ao rio e, não menos importante, em todos os locais do rio a que as pessoas têm acesso, existem peixes suficientes para alimentar o pescador metafórico e sua família. É, portanto, uma analogia que não resiste ao mais simples exame crítico. E mais, pode-se fazer outra pergunta: e quem for ruim de pescaria? Merece morrer de fome?
Entretanto, o principal problema está mesmo no seu postulado central, de que seriam alternativas independentes. Em termos menos coloquiais, frequentemente a mesma preocupação se expressa no debate sobre a relevância - ou legitimidade - de políticas que enfrentem a desigualdade de resultados (renda, moradia, alimentação, consumo, terra etc.) ou se apenas a busca de maiores níveis de igualdade de oportunidades (saúde, educação, qualificação profissional e, dependendo da concepção, crédito) seriam legítimas ou desejáveis. A questão é que, na realidade, no emaranhado complexo do tecido social, desigualdade de oportunidades e desigualdade de resultados não existem de maneira tão independente que nos permitisse escolher livremente, enfrentar exitosamente uma sem nos preocuparmos com a outra. E isto ocorre nos dois sentindos. De um lado, como ilustra o gráfico 1, a mobilidade social atual depende de como era a desigualdade econômica há 25 anos. Ou seja, uma parte importante das causas da desigualdade de oportunidades atual repousa na desigualdade de resultados do passado. Em condições de forte desigualdade econômica e social, as oportunidades e os meios para alcançar melhores condições - educação, aparência, redes de contatos e relações, expectativas, informação, estoque de ativos que permita lidar com riscos entre tantos outros - também se concentram e são transmitidas para as próximas gerações.
De outro lado, a constatação também é válida no sentido reverso. E esta é uma boa notícia. Garantir condições de vida minimamente dignas às famílias (resultados) hoje e associá-las à oferta de outras políticas e direitos, pode ser um meio importante para interromper a transmissão da pobreza de uma geração a outra, ou seja, para ampliar a igualdade de oportunidades. Como veremos adiante, é o que mostra um estudo recente sobre os impactos de longo prazo do Programa Bolsa Família, que indica que a maioria das crianças as quais eram beneficiárias do programa em 2005 deixaram de sê-lo quando adultos e várias delas chegaram a alcançar o mercado de trabalho formal ao longo de sua vida .
Gráfico 1 - Mobilidade Social relacionada com o Coeficiente de Gini
Na pesquisa desenvolvida pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds), "Mobilidade Social no Brasil: Uma ana?lise da primeira gerac?a?o de beneficia?rios do Programa Bolsa Fami?lia", são analisados os efeitos do auxílio na realidade econômica dos atuais adultos, participantes enquanto crianças/adolescentes do programa. O PBF se enquadra dentro dos Programas de Transferência Condicionada de Renda (PTCRs), política comumente adotada por países em desenvolvimento (IPEA, 2007).
Nesses programas existe a transferência de quantias em dinheiro para famílias pobres. Diz-se que a transferência é condicionada por um duplo motivo: porque se busca com ela criar condições para que as famílias tenham acesso a outras políticas e porque se requer uma ou várias contrapartidas da família beneficiada, como zelar pela frequência de seus filhos à escola (IPEA, 2007). Os PTCRs são consideradas políticas de distribuição de renda eficazes por possuírem grande capacidade de reduzir a pobreza monetária e a desigualdade de renda, ao mesmo tempo melhorar os indicadores de educação, de saúde, de poupança e de emprego do país (Imds, 2023).
O Programa Bolsa Família foi instituído em 2003 como uma maneira de unificar e expandir uma série de iniciativas fragmentadas e com cobertura limitada vigentes na época - os programas Bolsa Escola Nacional, Bolsa Alimentac?a?o, Auxi?lio Ga?s e Carta?o Alimentac?a?o - e, também, consolidar o Cadastro U?nico para Programas Sociais, que, atualmente, serve como uma ferramenta para identificar todas as familias de baixa renda brasileiras. De acordo com o Imds (2023), essa política pública foi arquitetada da seguinte maneira:
"A gesta?o do programa e? descentralizada e compartilhada entre a Unia?o, as Unidades Federativas e os munici?pios, conforme institui?do pela Lei n°10.836/2004 e regulamentado pelo Decreto n°5.209/2004. A selec?a?o das fami?lias e? feita de forma automatizada pelo governo federal com base nas informac?o?es registradas pelos munici?pios no Cadastro U?nico. O cadastramento na?o implica, no entanto, em uma entrada imediata das fami?lias no programa e o recebimento do benefi?cio. Os benefi?cios financeiros sa?o transferidos mensalmente a?s fami?lias beneficiárias, considerando-se a renda mensal per capita da fami?lia, o nu?mero de crianc?as e adolescentes ate? dezessete anos e a existe?ncia de gestantes e nutrizes. O PBF adotou duas linhas de elegibilidade, de pobreza e extrema pobreza, que permitiam acesso a benefi?cios distintos no seu ini?cio." (Imds, 2023, p.5)
Portanto, o benefício é restrito ao público-alvo da política, que são as famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza, sendo coordenado por diversas esferas estaduais. O PBF não transfere renda irrestritamente, pois as famílias possuem deveres a serem cumpridos para receberem o benefício, além das quantias serem determinadas de acordo com a situação e característica da família. O objetivo final do programa é a promoção da mobilidade de renda, ou seja, que as famílias se emancipem e não necessitem mais do auxílio. A Figura 1, apresentada pela reportagem da BBC (2023), ilustra os efeitos do programa sobre a participação atual dos beneficiários no CadÚnico:
Figura 1 - Participação atual dos beneficiários desde 2005
No estudo do Imds (2023), como uma forma de verificar a efetividade do PBF, focou-se na população assistida pelo programa que possuía entre 7 a 16 anos em 2005, observando a realidade desses indivíduos atualmente e se eles se encontram em realidades econômicas distintas de seus responsáveis em 2005. As duas formas de analisar se ocorreu a mobilidade social foram utilizados como indicadores a saída do Cadastro Único e ter conseguido acesso ao mercado de trabalho formal.
A partir da Figura 2, é possível perceber que a maior parte desses beneficiados tinham entre 10 a 16 anos, eram do sexo masculino, negros e residiam na região nordeste. É interessante notar que entre as pessoas do grupo analisado e que não constavam mais no CadÚnico em 2019 (64%), a maioria são homens brancos e da região sul, diferindo das características dos principais beneficiários, que eram homens negros e nordestinos. A Tabela 1 também permite observar a disparidade entre os grupos de indivíduos que chegaram a sair do CadÚnico. Enquanto no sul do país 74% estão fora, na região nordeste apenas 58% encontram-se na mesma situação, uma diferença de 16%. Em relação ao sexo, 69% dos homens não se encontram na plataforma, ao mesmo tempo que apenas 55% das mulheres conseguiram o mesmo feito.
Figura 2 - Característica dos beneficiários entre 7 a 16 anos
Tabela 1 - Participação no CadÚnico por idade, sexo, cor ou raça e região
Em relação ao mercado de trabalho, considerando todos os beneficiários analisados no estudo, 45% foram encontrados na base de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Segundo a Tabela 2, mais indivíduos que possuíam entre 10 a 16 anos (48%) em 2005 saíram da RAIS, quando comparados com os que possuíam 7 a 9 anos (38%). A diferença fica maior quando comparado os sexos e as regiões. Enquanto 51% dos homens constavam na base de dados da RAIS, apenas 39% das mulheres foram encontradas. Entre as regiões a diferença é de 30%, na região sul 60% estavam na RAIS e na região norte, com menor porcentagem, apenas 30% estavam presentes na base de dados.
Tabela 2 - Participação na RAE por idade, sexo, cor ou raça e região
Os autores da pesquisa concluíram que o Programa Bolsa Família contribuiu para a mobilidade social se uma parcela significativa dos beneficiários de 7 a 16 anos em 2005. Também, esses indivíduos apresentam condições socioeconômicas melhores ao acessarem o mercado formal de trabalho entre 2015 e 2019, quando comparadas às suas situações ao entrarem no programa. Além disso, eles observaram que "melhores estruturas de sau?de e educac?a?o sa?o importantes fatores para maior mobilidade social dos indivi?duos nos munici?pios" e "deciso?es de migrac?a?o podem representar significativas melhoras socioecono?micas, mesmo para os beneficia?rios do PBF" (Imds, 2023).
Tendo os dados obtidos pela pesquisa em consideração, percebe-se que programas como o Bolsa Família são importantes para a redistribuição de renda na sociedade, principalmente devido a sua grande aceitação e custos políticos mais baixos, quando comparado com outras soluções, como a mudança na alíquota de impostos ou o perfil tributário de um país. Também, o estudo vem como uma forma de consolidar o PBF como uma política bem-sucedida, contrariando muito das críticas que foram feitas ao programa, que seria apenas um gasto de dinheiro e que as famílias apenas viviam às custas do estado, deixando de estudar ou trabalhar.
Referências
BBC, 2023. Bolsa Família, 20 anos: 'Meus pais foram beneficiários, hoje sou engenheiro de software'. Disponível em:
Imds, 2023. Mobilidade Social no Brasil: Uma ana?lise da primeira gerac?a?o de beneficia?rios do Programa Bolsa Fami?lia. Disponível em:
IPEA, 2007. PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA CONDICIONADA DE RENDA NO BRASIL, CHILE E MÉXICO: IMPACTOS SOBRE A DESIGUALDADE. Disponível em: