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À margem da História

Opinião|Um dono de gráfica que atuou para libertar pessoas e livros

O carioca Francisco de Paula Brito (1809-1861) foi um pioneiro da imprensa e da literatura brasileiras, um empreendedor que apostou no conhecimento e na diversidade cultural

Foto do author Leonencio Nossa

Nesta semana, o Censo do IBGE revelou que os brasileiros se reconhecem cada vez mais como pardos e pretos. Pela primeira vez, o número dos que se declaram assim nas pesquisas do instituto ultrapassou o de brancos. É um processo muito antigo de alteridade, forjado por um movimento liderado pela intelectualidade negra ainda no tempo da Regência e do Império.

Um dos pioneiros mais ousados dessa ofensiva por igualdade social e econômica foi um carioca, homem negro e de origem pobre, gráfico de carreira, que apostou em escritores e jornalistas para libertar os escravizados e os livros. Francisco de Paula Brito atuou no mercado tipográfico, no Rio, quando obras impressas ainda eram vistas como coisas do diabo e o hábito de leitura costumava ser tratado como uma prática de desordem, resultado da censura imposta ainda com a chegada da família real ao Brasil.

O Mulato ou O Homem de Cor marcou o começo da imprensa negra no Brasil. Exemplar exposto na Biblioteca Nacional, no Rio. Foto: Leonencio Nossa

Em 14 de setembro de 1833, com boa parte da população brasileira no cativeiro, Paula Brito, um filho de carpinteiro, distribuía nas ruas do Rio O Homem de Cor, que depois seria rebatizado de O Mulato, ou O Homem de Cor, primeiro jornal do movimento negro no País. Nas páginas do periódico noticiaria acusações sem provas contra homens negros e crimes políticos. O jornal foi impresso somente até 4 de novembro daquele ano, mas limpou o caminho para uma série de publicações abolicionistas.

Como um dos pais da imprensa e, consequentemente, do texto objetivo no Brasil, Paula Brito abria seu jornal com um trecho da Constituição da época: “Todo o cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos e militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos e virtudes”. Assim, ele observava que, mesmo no texto constitucional feito sob medida para o poder dos brancos, era possível encontrar base legal para condenar o regime escravocrata que mantinha milhares no cativeiro e o sistema que impedia mesmo aos negros e pardos livres o exercício da intelectualidade e a ocupação de postos na máquina do Estado.

O gráfico Francisco de Paula Brito foi fundamental para a imprensa e a literatura brasileiras. Iconografia da Biblioteca Nacional. Foto: Biblioteca Nacional

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Mas Paula Brito não foi bem uma figura que cabia numa classificação apenas. Na gráfica do empreendedor o jovem Machado de Assis, mais tarde autor de Memórias Póstumas e Dom Casmurro, fazia revisão. Em outro jornal dele, A Marmota Fluminense, Machado conseguiu publicar seu primeiro poema, “Ella”.

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A literatura brasileira deve muito ao gráfico. Paula Brito publicou o primeiro romance nacional, O filho do pescador, de Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa, em 1843. O autor tinha pai português e mãe negra. O gráfico lançou também livros de escritores brancos influentes na Corte, como A Confederação dos Tamoios, poemas do diplomata Gonçalves de Magalhães, em 1857. De suas impressoras foi rodada ainda a popular antologia poética As primaveras, de Casimiro de Abreu, dois anos depois.

A trajetória de Paula Brito é a História de um editor que apostou em autores talentosos - negros, pardos e brancos, pobres e ricos, da cidade e do interior -, para tornar o livro um produto aceitável e possível de venda no Brasil. Ele chegou a trazer profissionais de Paris para ensinar a arte do impresso. Ganhou dinheiro, foi caçado por cobradores de dívidas, recebeu empréstimos até do imperador Pedro II, movimentou a cultura, libertou o prazer dos brasileiros pela leitura. Morreu em 1861, aos 52 anos.

Cidade do Rio, jornal de José do Patrocínio, contou a História da abolição e dos primeiros anos da República. Jornal exposto na Biblioteca Nacional. Foto: Leonencio Nossa

A imprensa negra chegaria ao apogeu, anos depois, capitaneada por um dos principais nomes do jornalismo brasileiro. José do Patrocínio editaria o Cidade do Rio, periódico que circulou entre 1887 e 1902, num momento crucial do processo da abolição e da República. Bateu pesado na casta militar que chegou ao poder com a queda da Monarquia e numa elite que achou que podia se fartar do dinheiro público. “O futuro do Brasil corre perigo!”, pregava o jornalista, outro desses que não pertencem a um tempo . Por conta de suas críticas, Patrocínio foi preso e mandado para a selva amazônica.

Em tempo, a Biblioteca Nacional, no Rio, tem uma exposição em aberto sobre a imprensa carioca do século XIX e XX. Os visitantes podem conferir as primeiras edições dos jornais dirigidos por Paula Brito e José do Patrocínio, além de folhas contemporâneas de movimentos sociais. “Uma janela para o armazém de periódicos” permite uma viagem aos primórdios do jornalismo e à luta de muitos de seus nomes para que o País reconhecesse suas diferentes cores - e possibilidades de desenvolvimento político, econômico e cultural.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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