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Diga-me que fake news queres proibir e eu te direi quem és

A luta moral pela verdade não é pura, mas se subordina à sua posição política, interesses e visões de mundo

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colunista convidado
Foto do author Fabiano Lana
Por Fabiano Lana
Atualização:

Aborto, clube de tiro, maconha, apologia à ditadura brasileira, fake news sobre o governo Bolsonaro, fake news contra o governo Lula. Faça uma lista do que você quer ver proibido ou punido e em troca irá receber seu rótulo ideológico. O confronto de valores chegou a tal ponto que o diálogo se tornou impossível e o que se quer é o silêncio forçado do lado oponente. E o caminho mais fácil é dizer que ele espalha mentiras, ódio, ou prega contra a ordem democrática.

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Ser intolerante com os intolerantes nem sempre é uma solução viável. Tomemos um exemplo histórico. Os maiores pilares do pensamento ocidental até os dias de hoje, na ciência, nas artes, na lógica, na política – Platão e Aristóteles –eram críticos da democracia ateniense. A República de Platão, que inspirou tantos livros de organização da sociedade, incluindo os de Karl Marx, prevê que a comunidade ideal deve ser uma ditadura conduzida por um... filósofo, que coincidência.

Platão dos dias de hoje deveria ser encarcerado por pregar contra a ordem democrática não importa o resto do seu legado? Não há soluções simples para esse dilema de cercear quem quer um regime fechado. Prender e censurar os defensores do autoritarismo e espalhadores de “mentiras” é apenas o desespero institucional de não saber lidar com esse fenômeno das opiniões transgressoras que se tornaram muito mais expostas com o advento das redes sociais. Se de um lado todo mundo fala e escreve o que quer, para chocar ou sem medir as consequências, de outro até humorista passou a ser censurado – o que é pior?

As respostas dependem de que lado você está, se a favor de Lula ou de Bolsonaro Foto: Adriano Machado/Reuters

Existe um certo padrão nas tentativas de proibição. São esquerdistas querendo proibir teses de expoentes direitistas e o contrário. Você não vê os tais “bolsominions” querendo prender o jornalista Alexandre Garcia por dizer que a culpa das enchentes no Rio Grande do Sul é do PT. Nem petistas quiseram prender Marilena Chauí por dizer “sem qualquer prova” que o ex-juiz Sérgio Moro foi agente do FBI para prejudicar o pré-sal brasileiro. Fake news, falas de ódio, muitas vezes são algo dito por um desafeto ideológico que te choca e não mentiras ou declarações repugnantes em si.

A luta moral pela verdade não é pura, mas se subordina à sua posição política, interesses e visões de mundo. Aliás, Lula dizer que não se lembrava do Tribunal Penal Internacional, que já foi invocado por ele a ponto de enviar uma carta de congratulações à juíza brasileira de lá, foi esquecimento ou fake news presidencial? E Bolsonaro dizer que vacinas contam em sua composição com dióxido de grafeno que se acumulam no ovário e testículos? É fake news, ingenuidade, ou má-interpretação da bula? Lula prega contra a ordem democrática ao defender a Rússia e a Venezuela? As respostas dependem de que lado você está.

Outro exemplo, que tal a frase: “Lula é o responsável pelo genocídio do povo negro no Brasil”. Fake news, frase a ser proibida e seu autor punido? Depende de sua paixão política. Na era do PT o número de negros assassinados anualmente no Brasil passou de 25 mil para 42 mil, um aumento de 70%. Ou seja, os dados permitem quase infinitas possibilidades para se fazer política, inclusive essa. Política ocorre muitas vezes escolhendo fatos a seu favor, não é necessariamente uma fake news. Um sentença como essa poderia ser contestada por argumentos como o crescimento econômico da época teve um efeito colateral do aumento da violência e não pedir sua proibição pura e simples.

Mas há uma solução possível para o nosso impasse: estar aberto às falas e valores dos oponentes. Tentar compreendê-los, entender as razões de seus pensamentos, antes de defender sua extirpação da sociedade. Por exemplo, ir a um clube de tiro e perceber que nem todos lá são monstros que querem matar quem está a sua frente. Para muita gente é apenas um esporte. Perceber, por outro lado, que é bastante razoável defender a liberação das drogas, talvez as leves, com o argumento de que se trata de um problema de saúde que o é melhor institucionalizar, fazer o Estado recolher os impostos, e que a polícia se concentre nos crimes mais graves. Discordar, debater e não querer coibir.

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Nunca houve e nunca haverá sociedade sem proibições. É a antessala do caos e da anarquia destrutiva. Crimes de ódio por óbvio existem e, com certeza, os atos de oito de janeiro em Brasília mostram em si que um limite foi rompido. Mas daí em transformar em “crime de ódio” tudo que você considera politicamente inconveniente tem sido um passo. A partir do momento em que proibir falas e posicionamentos se torna algo banal a sociedade estará doente e longe de qualquer tipo de conciliação. Toda proibição de posicionamentos deveria ser seguida por um lamento de porque falhamos como corpo social.

Há uns 2,4 mil anos a filosofia está em busca dos conceitos de verdade e mentira sem chegar a uma conclusão consensual satisfatória. Será fenomenal que a turma que quer calar e prender todo mundo que os chateia tenha finalmente conseguido estabelecer esses princípios de maneira definitiva. Se sim, estão de parabéns por encontrarem o Santo Graal. Por fim, uma dúvida sincera: a afirmação de que “fake news é crime” trata-se ou não de fake news, o que deve ser passível de crime de prisão?

Fabiano Lana é filósofo e analista político

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