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Problema é romper ‘escudo político’ de crimes ambientais, diz delegado da PF

Alexandre Saraiva, que investigou Ricardo Salles, lança livro sobre grupos que fazem extração ilegal de madeira e ouro

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Foto do author Roberta Jansen
Por Roberta Jansen
Foto: PEDRO KIRILOS
Entrevista comAlexandre SaraivaDelegado da Polícia Federal e autor do livro 'Selva - Madeireiros, Garimpeiros e Corruptos na Amazônia sem Lei"

RIO - “Selva” é o grito de guerra dos militares brasileiros treinados para combater na Amazônia. É também o nome do livro que o delegado Alexandre Saraiva, de 52 anos, da Polícia Federal, acaba de lançar (256 páginas, Editora Intrínseca, R$ 59,90 edição impressa, R$ 29,90 o e-book) para contar sua experiência de dez anos à frente das superintendências regionais da PF em Roraima, Maranhão e Amazonas. Nessa trajetória, teve contato com personagens que povoam o subtítulo da sua obra: Madeireiros, Garimpeiros e Corruptos na Amazônia sem Lei.

Em 2021, Saraiva fez a maior apreensão de madeira ilegal da história da PF: 226.760 metros cúbicos. Era o suficiente para encher pelo menos 7,5 mil caminhões com toras - uma fortuna, avaliada em R$ 130 milhões. A ação o levou a enfrentar o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o transformou em persona non grata no governo Jair Bolsonaro e lhe rendeu um cargo bem longe da floresta, em Volta Redonda (RJ).

“O problema não é mais operacional, o problema é romper o escudo político dessas organizações criminosas”, afirmou, na conversa com o Estadão, Saraiva, considerado um dos maiores especialistas da Polícia Federal em repressão a crimes ambientais.

A ação de Saraiva incluiu uma notícia-crime contra o então ministro do Meio Ambiente, suspeito de atrapalhar a fiscalização ambiental e de patrocinar interesses privados na administração pública. A representação foi encaminhada ao Supremo Tribunal Federal (STF). Também desencadeou o processo que resultou na exoneração de Salles, cuja permanência no cargo tornou-se insustentável, depois do que foi interpretado como defesa da extração criminosa de madeira.

“Eu não saio de casa para enxugar gelo, eu saio de casa para resolver problema”, afirmou o delegado em entrevista ao Estadão. “E, se não consigo resolver o problema, é porque estou fazendo algo errado. Não posso repetir as mesmas estratégias, esperando resultados diferentes. Eu acredito muito na ciência e tive a sorte de encontrar policiais muito competentes.”

Formado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com especialização em Gerenciamento de Organizações de Políticas Públicas pela Universidade Cândido Mendes e doutorado em Ciências Ambientais e Sustentabilidade da Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Saraiva se declara um apaixonado pela ciência. Segundo ele, o desmatamento da Amazônia pode ser praticamente zerado em apenas seis meses com o uso de tecnologia de ponta para gerar imagens de satélite e rastreamento de madeira. Tudo depende, disse, da vontade política.

Saraiva ainda acusou a Europa de ser “hipócrita” em relação ao discurso ambiental, uma vez que é a maior compradora da madeira extraída ilegalmente na Amazônia. “A certificação que existe é apenas para europeu dormir tranquilo”, disse.

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A seguir, os principais trechos da entrevista do delegado ao Estadão.

Para o delegado Alexandre Saraiva, é preciso quebrar a cobertura política aos criminosos ambientais no Brasil Foto: PEDRO KIRILOS

O senhor não conhecia muito sobre a realidade da Amazônia quando aceitou assumir o cargo de superintendente regional da PF em Roraima. A realidade era muito diferente do que o senhor imaginava?

Eu tinha experiência em crimes ambientais. Tinha sido chefe da delegacia de crimes ambientas da Polícia Federal no Rio, entre 2006 e 2007. Nessa época, comandei a maior operação de combate à corrupção ambiental fora da Amazônia Legal, que resultou na prisão de 80% do pessoal da fiscalização do Ibama no Rio. Comandei também uma operação contra o tráfico internacional de animais silvestres, que fez prisões em dez Estados brasileiros e cinco países. Os caras levavam ovos de arara azul para o exterior. A questão da investigação da corrupção como elemento fundamental para crimes ambientais vem desde essa época. Os crimes ambientais estão nessa categoria de crimes que a sociedade brasileira tolera, como jogo do bicho e máquina caça-níquel. É um crime extremamente lucrativo e com penas mais baixas.

Mas e a chegada a Roraima?

Cheguei a Roraima com a cabeça de alguém do Sudeste sobre a Amazônia, com base no senso comum. Quando me deparei com a realidade, vi que as coisas não são bem assim. É muito diferente do que a maior parte das pessoas que vive no litoral acha que é. Tem um verso do Milton Nascimento e do Fernando Brant que diz “ficar de frente para o mar e de costas para o Brasil não vai fazer desse lugar um bom país”. E é isso mesmo.

Em que sentido o senhor diz que a realidade era muito diferente do que se imagina?

Foi um choque ver como as coisas funcionavam de verdade, constatar que a dinâmica da destruição tinha mudado muito no que diz respeito à grilagem de terra e à exploração ilegal de madeira. Essas atividades eram vistas como efeitos colaterais, o que causava o desmatamento, era o plantio da soja e a pecuária. Mas o que eu vi não foi isso. A destruição é o próprio negócio. O capital vem da venda da madeira.

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Historicamente, o sudeste asiático é o grande fornecedor mundial de madeira tropical dura (ou madeira de lei, exemplares de 200 anos a mais de mil anos), mas a sua produção vem caindo vertiginosamente porque não há mais o que desmatar, sobrou muito pouco. Então, houve uma alta no mercado internacional, que está sendo encharcado de madeira de altíssima qualidade da Amazônia. Ninguém planta nada, só desmata. E esses criminosos têm custo zero porque a madeira é furtada de terras indígenas ou de unidades de conservação. O segundo principal insumo da indústria madeireira é a energia elétrica. Eles tampouco pagam eletricidade e conseguem liminares na Justiça garantindo que a energia não será cortada. A mão de obra é análoga à escravidão; ou seja, nenhum direito trabalhista. Veja, passei dez anos na região e posso dizer que 99,9% da madeira que sai de lá é ilegal.

Madeira documentada não é sinônimo de madeira de origem lícita. A grande maioria da documentação é falsa, não corresponde à realidade, as informações são autodeclaradas, só servem para gerar o Documento de Origem Florestal necessário para o desmatamento lícito. Desmatamento e grilagem andam de braços dados. O sujeito se declara dono de uma área e ganha o titulo da terra, sem cumprir os requisitos legais. A Lei 11.259, artigo 5, tinha um objetivo louvável, de que pequenos produtores não fossem despejados. A fraude mais comum é se declarar dono de terras inexploradas, áreas intocadas, onde ninguém residia. Pegamos casos de pilotos de avião, médicos e até modelos. Teve o caso de um sujeito que declarou ocupar a terra desde 2004, sendo que ele tinha nascido em 1996 e a área era totalmente inexplorada, como pudemos constatar com as imagens de satélite. Quer dizer, ele vivia no meio da mata fechada desde os oito anos de idade. Era o Mogli, como a gente chamava. Desde 2012, a União transferiu para os Estados a competência de autorizar o desmatamento. Não que antes disso fosse perfeito, mas perdeu o rumo completamente. Se a gente quiser resolver 80% do problema, basta fazer uma auditoria nos processos administrativos dos órgãos estaduais.

Muito se falou que esse mercado da madeira ilícita não teria futuro no exterior porque a União Europeia só compra madeira certificada e não compraria madeira fruto da extração ilegal. Isso não aconteceu?

Eu também já acreditei muito nisso. Mas a Europa, quando fala em proteção da Amazônia, tem um discurso muito hipócrita. A verdade é que o desmatamento da Amazônia gera emprego na Europa. É na Europa que essa madeira toda vira móveis, ou seja, agrega valor. Quando se trata da importação de carne bovina, por exemplo, a regulamentação europeia é muito rigorosa, são mais de 300 artigos. O boi tem passaporte, brinco na orelha, rastreabilidade, geolocalização. Já para importação de árvores nativas da Amazônia, o regulamento tem pouco mais de 20 artigos, nenhuma exigência. Basicamente, basta declarar pela primeira vez de quem comprou a madeira e depois não precisa dizer mais nada. Falei isso na cara dos embaixadores europeus que estiveram na Amazônia. A verdade é que a madeira entra como insumo; os produtos agropecuários, como concorrentes.

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Mas e a tal da certificação exigida?

Essa certificação só certifica transferências legais de propriedade. O que acontece no transporte de Manaus até o porto de Paranaguá não é certificado. Tampouco a madeira que fica em depósitos. Esses são os momentos mais críticos do percurso, quando é fácil juntar madeira ilegal à madeira documentada. Essa certificação só serve para europeu dormir com a consciência tranquila.

Não dá para acreditar em ninguém?

Olha, eu acredito muito mais nas pessoas do que nos governos. Acredito na moratória, no povo parar de comprar, como pararam de comprar pele de animais, produtos que usavam CFC (que contribuíam para o buraco na camada de ozônio). No fim das contas, a humanidade é reflexo do que cada um de nós faz.

Como se estrutura uma dessas organizações criminosas?

Ela é muito bem estruturada, com tentáculos em vários escalões do governo. É como uma grande empresa, só que à margem da lei. E elas agem em várias frentes, fazendo pressão junto a políticos e até ministros, coisa que nunca tinha visto; judicialmente, obtendo liminares e mandados de segurança. A Interpol estima que madeira ilegal movimente US$ 153 bilhões por ano, 80% disso na exportação.

Em reunião ministerial, o então titular do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fala em ‘passar a boiada’ no que diz respeito à legislação ambiental. Acha que houve mudança nos esquemas criminosos da região?

Na verdade, nunca foi fácil. Mas o que se viu no decorrer do governo Bolsonaro foi um apoio explícito à destruição, e isso nunca tinha acontecido antes. As organizações se sentiram mais confiantes para aumentar suas atividades. Bolsonaro assumiu com uma taxa de desmatamento de 7 mil km2 ao ano e entregou o governo com 14 mil km2. Foi um aumento muito grande. Para se ter uma ideia, a cidade de São Paulo tem 1,5 mil km2. É bom lembrar que o desmatamento não gera riqueza alguma para o Brasil. Representa muito pouco para o PIB e contamina todo o restante com essa pecha de vilão ambiental. O agronegócio faz um péssimo negócio ao se unir ao madeireiro ilegal. As árvores, por conta dos serviços ambientais que prestam, são muito mais importantes como árvores do que como mesa ou deck de piscina. Precisamos abandonar o uso de madeira da Amazônia, da mesma forma como abandonamos o uso de peles de animais silvestres. Não é um recurso renovável, como o sudeste asiático está demonstrando.

Delegado Saravia diz que quase toda a documentação que legaliza exportação de madeira é falsa e serve para 'europeu dormir tranquilo' Foto: PEDRO KIRILOS

O senhor foi responsável pela maior apreensão de madeira ilegal da história da PF. Foi uma quantidade tão absurda que seriam necessários 7,5 mil caminhões para transportar os troncos. Ainda assim, o desmatamento continua e parece irrefreável. O senhor tem a sensação de estar enxugando gelo?

Não, nunca tive. Eu não saio de casa para enxugar gelo. Eu saio de casa para resolver problema. E, se não consigo resolver o problema, é porque estou fazendo algo errado. Não posso repetir as mesmas estratégias, esperando resultados diferentes. Eu acredito muito na ciência e tive a sorte de encontrar policiais muito competentes. Juntos, criamos soluções. Uma delas é usar imagens de satélite. Outra é instalar câmeras nos rios, nas estradas, usar inteligência artificial. E mais, temos formas de mostrar de onde exatamente está vindo aquela madeira e provar que ela é ilegal.

Como isso é possível? CSI da Polícia Federal?

(Risos) Como eu disse, eu acredito muito na ciência. Se não fosse policial, seria cientista. Ou músico. Enfim. Mas existe uma tecnologia capaz de medir os isótopos estáveis, o número de nêutrons presentes em um átomo de um determinado elemento químico. Um átomo de hidrogênio, por exemplo, no Rio de Janeiro, é diferente de um átomo de hidrogênio em Manaus. Nosso equipamento consegue medir o número de isótopos estáveis em pelo menos cinco elementos.... Quanto mais elementos puderem ser medidos, mais precisa é a localização geográfica da origem do material. Os Estados Unidos usam essa tecnologia para determinar o local de produção da droga apreendida. Ora, se funciona com cocaína, eu pensei, deve funcionar também com madeira. Então mandei trazer o equipamento. Eu tenho a convicção de que podemos terminar com o desmatamento da Amazônia em seis meses. Não se trata mais de um problema operacional, das dimensões continentais do Brasil. Antes existia essa desculpa, agora não. O problema, agora, é romper o escudo político dessas organizações. A pauta ambiental precisa ser suprapartidária. Vivemos no mesmo planeta, respiramos o mesmo ar.

E o garimpo ilegal? Dá para rastrear o ouro também?

Sim. No garimpo é o mesmo problema. O ouro precisa ser documentado, mas uma grande parte sai clandestinamente. Uma vez, dois americanos apareceram na Receita Federal do aeroporto de Manaus para declarar 35 quilos de ouro. Os agentes da Receita estranharam, mas eles disseram que era ouro reciclado de joias, que eles iam levar para os Estados Unidos. Por sorte, nós tínhamos um equipamento único no Brasil, a fluorescência de raio-x (capaz de apontar a composição química de uma substância). É uma pistola portátil. Mandei um agente lá no aeroporto, ele fez a análise, que revelou que o ouro tinha 98% de pureza, o que é incompatível com ouro reciclado de joias. Para fazer uma joia, o ouro só pode ter 75% de pureza, ou é impossível. O ouro tem um percentual de prata, chumbo, cádmio. E em cada lugar ele tem uma assinatura química única, porque ele foi formado em áreas diferentes, em épocas geológicas diferentes. Uma semana depois de eu ter comprado o equipamento, ele já tinha se pagado vinte vezes com essa apreensão. Para você ver como vale a pena investir em ciência.

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O senhor acredita que dá para acabar com o garimpo ilegal também?

Sim. Em 2011, acabamos totalmente com o garimpo ilegal em um ano (em Roraima). Resolvemos atacar a logística. Apreendemos 14 aviões, suspendemos os brevês dos pilotos, explodimos as balsas e criamos uma base da PF na área. Três meses depois de eu ir embora, fecharam a base. O problema voltou. Em 2019, junto com o (indigenista) Bruno Pereira, e com a ajuda dos satélites, destruímos 60 balsas em terras ianomâmis. O cara deveria ter ganhado uma medalha, mas acabou sendo exonerado da Funai (Bruno foi assassinado em junho do ano passado). O garimpo é um problema muito sério. Não tenho conhecimento de nenhuma tecnologia capaz de tirar mercúrio da água. E o mercúrio é um grande problema, ele entra na cadeia alimentar, ataca o sistema nervoso central. Essa história de que o garimpo gera riqueza é uma grande mentira; ele gera pobreza.

O que é mais difícil de combater? A extração ilegal do ouro ou a de madeira?

O ouro tem muito valor e cabe em pouco espaço. Além disso, tem mais liquidez. A transformação do ouro em moeda corrente é mais rápida. Acho que é mais difícil combater o ouro.

Mas mesmo assim o senhor disse que, de um ano para o outro, acabou com toda a operação em Roraima....

Ah, sim, com dois helicópteros e 60 policiais a gente acaba com o garimpo ilegal na Amazônia inteira. Uma das causas do crime é a ausência de guardião, quando o Estado não está olhando. Não precisa ser uma pessoa, pode ser um satélite. A partir do momento em que você mostra que o Estado está olhando, a atividade ilegal cai vertiginosamente. Por exemplo, qual é a probabilidade de você ser parado numa Lei Seca? É 0,0001%. Mas acredito que 80% das pessoas deixaram de beber e dirigir porque se criou o risco de ser pego. E isso acabou mudando a cultura. Mas, claro, a Polícia não pode fazer tudo. A Polícia é parte da solução. Não dá para preservar o meio ambiente sem preservar as pessoas.

Dia dos Povos Indígenas: terras são alvo dos madeireiros e garimpeiros Foto: PEDRO KIRILOS

O que o senhor sentiu quando viu o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles dizendo numa reunião ministerial que ia aproveitar que a população e a imprensa estavam focadas na pandemia de covid-19 para ‘passar a boiada’ na legislação ambiental?

Pensei que, se as coisas já estavam difíceis, iam ficar mais difíceis ainda. Mas permaneci na superintendência, sempre andando no fio da navalha. Muita gente, inclusive, me criticou por isso. Mas eu sou um servidor público. Não posso dizer que não vou trabalhar porque ganhou um candidato de direita. O limite é a lei. Se não estivesse onde estava não teria feito a apreensão que fiz. Depois, outro colega, Franco Peranzzoni, que na época era o superintendente do Amazonas, também fez uma grande operação. Na sequência, fomos todos exonerados, para se ter uma ideia do dano que isso causou. O governo já tinha promovido um grande desmonte dos órgãos de proteção ambiental. Quando desmontou também a parte ambiental da PF, aí acabou. Se aquele dinheiro todo que foi gasto com o Exército tivesse sido aplicado no Ibama, as coisas seriam muito melhores.

O senhor se candidatou a deputado federal pelo Rio de Janeiro nas últimas eleições e, embora tenha tido mais de 16 mil votos, não se elegeu. Por outro lado, o ex-ministro Ricardo Salles foi o quinto deputado federal mais votado por São Paulo. Como explica isso? Pretende se candidatar de novo?

É fácil de explicar. O Congresso Nacional pode ter todos os defeitos, mas ele representa o que o nosso povo pensa. É um espelho. Eu achava que eu tinha um dever cívico de me candidatar, perdi, tudo bem. Não autorizei o uso do fundo partidário nem do fundo eleitoral. Fiz a campanha com R$ 5 mil do meu bolso e tive 16 mil votos. Segue o jogo. Tentei, não me animo a tentar de novo. Agora é a vez dos outros.

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