Na segunda-feira, 17, Luciano Pontes da Silva conseguiu encher dois galões d’água num posto de gasolina nas imediações da avenida Faria Lima, em São Paulo, onde vive em situação de rua há quase dois anos. “Quando o gerente (do posto) não está, a gente se vira”, diz ele, que tem 19 anos e estudou até a terceira série do ensino fundamental. Com um sabonete e dois baldes, lavava roupas, estendidas numa cerca de um terreno na rua Fiandeiras por uma vizinha de barraca. Brasas acesas na calçada ajudariam no preparo da refeição que provavelmente seria a única do dia, inclusive de três crianças pequenas e sua mãe que moram no mesmo acampamento.
”Às vezes, alguém para o carro e nos dá um pacote de arroz, de feijão, uma marmita… e a gente vai vivendo”, afirma uma jovem de 18 anos, que tem vergonha de se identificar e diz preferir viver nessa região do que no centro, onde “tem muito noia”. Balas e flores vendidas nos bares e faróis da região ajudam a compor a renda. Área nobre e conhecida como o coração financeiro do País, a Faria Lima está longe de ser o único lugar no qual há a mesma realidade de muitas esquinas do País - e que pode ter um peso inédito no segundo turno das eleições.
Há hoje quase 86 mil famílias em situação de rua apenas no Estado de São Paulo, pelos registros do Cadastro Único (CadÚnico), do governo federal, segundo estudo do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (Polos-UFMG). A alta foi de 13% entre 2019 e 2021. Em outra pesquisa, do Centro da População em Situação de Rua, o aumento chegou a 31% no mesmo período - sendo que em algumas subprefeituras o número cresceu seis vezes.
O impacto dessa fatia da sociedade nas urnas, porém, não seria causado por números absolutos, mas pelo que ela representa a uma camada muito maior de eleitores. Em um extrato social que ganha um pouco mais, a sensação de vulnerabilidade muito próxima e o medo de descenso social se tornaram maiores na pandemia, por conta de uma nova realidade.
”Nos últimos meses, a inflação e o desemprego caíram, o Auxílio Brasil ajudou - o que aumentou a aprovação do governo Bolsonaro -, mas a sensação de vulnerabilidade continua grande”, afirma Christopher Garman, diretor para Américas da consultoria de risco político Eurasia. “Há uma fatia da população que relata ‘matar um leão por dia’ e, ainda assim, não consegue mais fechar as contas.
A tendência não tem números consolidados, mas foi percebida por diversos pesquisadores. O economista Ricardo Paes de Barros, um dos idealizadores do Bolsa Família, diz que a vasta maioria da classe trabalhadora mais pobre não está conseguindo se reinserir porque, aparentemente, sua estratégia de sobrevivência foi destruída pela pandemia.
”O Estado se distanciou da população mais pobre, sabemos pouco o que a aflige mas, aparentemente, muito do que esses trabalhadores faziam não era essencial à economia”, disse recentemente, no lançamento do painel de indicadores multissetoriais de pobreza. Mesmo na volta das atividades com a melhora da pandemia, afirma Paes de Barros, seus produtos e serviços deixaram de ser demandados.
Segundo a empresa de pesquisas Plano CDE, as classes mais baixas tiveram perdas mais agudas não só por conta da inflação - ligada mais a produtos do que a serviços (mais consumidos pela classe média) -, mas também porque há menos dinheiro entrando no bolso dessas pessoas. “Cerca de 60% da renda das classes C, D e E é variável”, afirma Maurício de Almeida Prado, diretor executivo da empresa. “Só que muitos trabalhos domésticos e outros serviços informais não voltaram aos patamares pré-pandemia.
”Na ponta do lápis, o peso da inflação, somado à redução da renda variável, resultou na sensação de empobrecimento maior para quem já tinha menos. De acordo com a Plano CDE, enquanto os 50% mais ricos perderam 4% da renda entre 2018 e 2021, os 10% mais pobres tinham menos 20% no bolso. “Para essa população, a sensação ainda é de perda”, afirma Almeida Prado. “As coisas estão menos piores, mas nem de longe retornaram ao que eram.
”Como o fenômeno é global, seu reflexo pode dar pistas em relação à eleição brasileira na visão da Eurasia, que trabalha com alguns bancos de dados e inteligência preditiva em cima de mais de 300 eleições já realizadas ao redor do mundo. Nos países que enfrentaram choques inflacionários como o Brasil, por exemplo, 80% dos líderes deixaram o cargo em até dois anos. “É o que tem acontecido em toda América Latina, com as trocas de comando em Chile, Colômbia e Peru”, diz Garman.
Por outro lado, na base de dados da Eurasia, presidentes com taxa de aprovação de 40% têm 58% de chance de se reeleger. O índice da gestão Bolsonaro, de 30% no fim do ano passado, tem superado os 40% em algumas pesquisas. Entre os motivos, estão a queda no desemprego e a consequente recuperação da renda. Soma-se a isso três meses consecutivos de deflação, além do pacote de bondades com viés eleitoral.
Nas eleições de 2018, a consultoria afirmou, com um ano e meio de antecedência, que um candidato antiestablishment ganharia as eleições e que Bolsonaro levaria a faixa, seis meses antes do pleito. Agora, suas apostas para o segundo turno são de que Lula tem 65% de chances de levar - e um dos principais motivos é a sensação de vulnerabilidade crescente de boa parte da população. “Se não fosse o choque inflacionário, Bolsonaro seria reeleito”, diz Garman.
Num País tão dividido, porém, a certeza está longe de ser tão evidente. Pesquisas eleitorais divulgadas esta semana mostraram Lula perdendo votos entre quem tem menor escolaridade e renda. Bolsonaro faz o movimento oposto. O mesmo aconteceu entre eleitores que recebem o Auxílio Brasil.
João Carlos Batista, o pastor João Boca, coordenou por 25 anos a Missão Cena, que realiza trabalhos com pessoas em situação de rua, em São Paulo. Liderança evangélica respeitada na área, trabalha hoje com famílias carentes em quatro comunidades. Para ele, não há favoritismo em relação aos candidatos entre os mais pobres. “A polarização que se vê em toda a sociedade se repete também entre os que ganham menos”, diz. “Antigamente, essas pessoas eram carentes também de informação, mas essa realidade não existe mais: todo mundo tem acesso a tudo, sabe ler e interpretar cada um dos fatos, de acordo com suas crenças.”
”No seu dia a dia, ele vê muitas pessoas com medo de perder o emprego e, muitas vezes, sem conseguir pagar as contas do mês. Mas diz encontrar, na mesma medida, quem continue fã da Lava Jato - e jamais votaria no Lula e quem veja no “discurso agressivo, Bolsonaro ser contra a bíblia” e o rejeite nas urnas. “A resiliência do pobre é maior”, afirma ele. “Independentemente do que aconteça na eleição, no ano que vem vamos ouvir panelas batendo de novo porque o povo está muito dividido.”
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