Tenentismo: A rebelião que ainda paira sobre a vida da República

Publicação de cartas falsas e fraude eleitoral provocam, há 100 anos, a Revolta do Forte de Copacabana

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Por Wilson Tosta e Marcelo Godoy
Atualização:
9 min de leitura

Ao passar o comando do Sudeste para se tornar ministro de Jair Bolsonaro, o general Luiz Eduardo Ramos citou uma frase do tenente Antônio Siqueira Campos: “À Pátria tudo se deve dar sem nada exigir em troca, nem mesmo compreensão”. A reverência à memória do líder da Revolta do Forte de Copacabana é lugar-comum na caserna.

Siqueira Campos foi um dos sobreviventes da revolta de 5 de julho de 1922, que marcou, há cem anos, o início do tenentismo – movimento que ajudou a enterrar a República Velha. Eram jovens militares que aderiram à Reação Republicana, de Nilo Peçanha, candidato à Presidência que se opunha às oligarquias dominantes.

Batiam-se pela salvação da Nação, contra a fraude eleitoral e pelo voto secreto. Nesses cem anos, a memória deles foi disputada pela esquerda, do capitão Luiz Carlos Prestes, e pela direita – o general Arthur da Costa e Silva, segundo presidente do ciclo militar e ex-tenente nos anos 1920, dizia que o regime de 1964 realizava os ideais dos jovens rebeldes.

As ideias liberais do começo se transformariam em adesão ao autoritarismo na década seguinte. Nem à esquerda – Prestes e o PCB – nem à direita – Juarez Távora e João Alberto – apostava-se na democracia. Como Távora, a maioria dos rebeldes dos anos 1920 aderiu ao projeto de modernização pelo alto, patrocinado pelo general Pedro Aurélio de Góes Monteiro e por Getúlio Vargas. A influência do grupo se estenderia até a ditadura militar.

O Estadão vai mostrar até o dia 5, por meio de entrevistas e reportagens, a história da Revolta de 1922. Trata-se de olhar o passado e compreender o presente. Um século depois, a República se vê diante de uma campanha eleitoral em que pairam a ameaça das notícias falsas, as acusações de fraude e as tentativas de fazer da honra militar um instrumento político.

Cartas

Foi, aliás, uma notícia mentirosa, baseada em duas falsificações produzidas por estelionatários, que catalisou a tensão que explodiria no batismo de fogo do tenentismo: a Revolta dos 18 do Forte. A crise nasceu em 9 de outubro de 1921, na página 2 do Correio da Manhã, onde foi publicada uma carta atribuída ao então governador de Minas, Arthur Bernardes. Era dirigida ao senador Raul Soares, um civil de um Estado sem litoral que, para desagrado da Marinha, chefiara a Força entre 1919 e 1920.

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No texto, o chefe do governo mineiro, candidato governista à Presidência, atacava o ex-presidente e marechal Hermes da Fonseca. Também insultava os militares, que insinuava serem subornáveis. As ofensas aos fardados insuflaram o Clube Militar, apesar dos desmentidos de Bernardes. A letra era quase idêntica à do presidenciável, com diferenças quase imperceptíveis mesmo para peritos. “Estou informado do ridículo e acintoso banquete dado pelo Hermes, esse sargentão sem compostura, aos seus apaniguados, e de tudo que nessa orgia se passou”, dizia a primeira carta, de 3 de junho de 1921. “Essa canalha precisa de uma reprimenda para entrar na disciplina. (...) A situação não admite contemporizações, os que forem venais, que é quase a totalidade, compre-os com todos os seus bordados e galões.”

Cartas falsas publicadas na primeira página do ‘Correio da Manhã’  Foto: Reprodução

A segunda carta foi publicada pelo Correio em 13 de outubro. Bernardes chamava o candidato da oposição, o ex-presidente Nilo Peçanha, de “moleque” – um adjetivo racista, já que o antigo mandatário era negro e associado por críticos aos malandros. Prometia enquadrar os políticos “recalcitrantes” a apoiar a candidatura de Soares em Minas, sob pena de “perderem posições”. Voltava a atacar os fardados. “Das classes armadas”, dizia, “nada devemos temer”.

Calígrafo

Mas era tudo mentira. As “cartas falsas”, como passaram à história, eram obra de um hábil calígrafo, Jacintho Guimarães. Com ele, atuou um vigarista conhecido, Oldemar de Lacerda. Primeiro, tentou vender os papéis ao próprio Hermes da Fonseca. Depois, procurou políticos ligados a Bernardes. Pediu 30 contos de réis ao senador Paulo de Frontin. Sem sucesso nessa tentativa, foi à oposição.

Chegou ao senador Irineu Machado. O parlamentar teria procurado Edmundo Bittencourt, dono do Correio. Este teria acreditado na história, na qual viu oportunidade de atacar um governo que (como outros) o Correio combatia.

Notícias sobre a existência dos documentos com termos prejudiciais a Bernardes circulavam pelo menos desde o início do segundo semestre de 1921. O próprio Correio se referiu, em 20 de julho, a uma carta supostamente enviada a Soares por Bernardes. Nela, o mineiro se expandiria “em termos desprezíveis e até ultrajantes, a respeito do Exército”.

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Um boato que corria era que Raul Soares oferecia recompensa por uma valise ou pasta com documentos importantes, que perdera. Outro era que o senador esquecera os papéis no bolso de um sobretudo no Hotel América. Uma nota publicada no governista Jornal do Commercio, em 20 de setembro de 1921, denunciou que cartas atribuídas ao mineiro eram oferecidas “na sombra”, para “pura exploração, para ameaçar e extorquir dinheiro”. Segundo o diário, as cartas falsificadas teriam caligrafia que imitava bem a de Bernardes. A revelação teria levado o Correio a publicar a primeira carta.

Forte de Copacabana, no Rio; um século da revolta Foto: Tasso Marcelo/Estadão - 12/8/04

Eleição

O cenário de tantas intrigas era um país que vivia um processo sucessório tenso. Nele, as cartas aprofundaram a polarização e agravaram as paixões políticas. Bernardes era o candidato ungido pelo Palácio do Catete para vencer as eleições fraudadas. Doze anos antes, o gaúcho Hermes da Fonseca tinha quebrado o revezamento São Paulo-Minas da política café com leite. Ex-ministro da Guerra, ampliara sua liderança ao modernizar o Exército. Presidira o Brasil de 1910 a 1914. Ainda como ministro, Hermes enviou à Alemanha, para estudar, alguns jovens tenentes. Eles se encantaram com o poder militar e o desenvolvimento alemão. Criou-se, assim, o núcleo do tenentismo. Hermes era visto como possível candidato a novo mandato, o que não se viabilizou. Outro ex-presidente, Nilo Peçanha, tornou-se o postulante das oligarquias dissidentes, que formaram a Reação Republicana. Apesar das fraudes, ia haver disputa.

Versões

A crise teve elementos de folhetim – inclusive com as cartas, envoltas em mistério e escândalo. Mário Rodrigues, pai dos futuros jornalistas Nelson Rodrigues e Mário Filho, relatou ter recebido um dia um telefonema na redação do Correio. Era Irineu Machado. Dizia estar com alguém que tinha papéis importantes, “que interessariam muito à política”. Convidou-o a encontrá-lo em sua casa, em Laranjeiras. Lá estava o portador, que iria em seguida para a Europa.

Mário escreveu que foi de táxi ao encontro, no qual conheceu um homem que descreveu como “baixote e atarracado”. Era Oldemar de Lacerda. O estranho lhe ofereceu as cartas. Desconfiado, Mário perguntou como comprovaria que eram autênticas. Lacerda lhe mostrou outro documento manuscrito por Bernardes. A letra parecia a das cartas. Estas estavam escritas em papel timbrado do governo de Minas.

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“Enfim, eu levaria ao então diretor do Correio a encomenda”, escreveu Mário Rodrigues. “Entreguei-a, narrei o caso pormenor a pormenor, adverti o depositário dos papéis da necessidade de uma investigação demorada. No dia seguinte, estourou a bomba.”

Bernardes ficou impressionado com a semelhança entre a letra produzida pelo falsificador e sua própria grafia. Destacou, porém, uma diferença. Na falsificação, o “t” do seu prenome não era cortado por um traço, erro que nunca cometia ao assinar. Políticos e jornais governistas atacaram o Correio.

O Clube Militar não pensava assim. Por 439 votos a 112, uma assembleia da entidade aprovou uma investigação sobre o caso. Para determinar se o material era verdadeiro ou falso, foi criada uma comissão, que teve a participação de dois peritos. Bernardes designou dois membros – o que alguns de seus partidários consideraram um erro. Até o Correio estava representado. Edmundo Bittencourt indicou para o posto o general Ximeno de Villeroy.

Entreguei-a, narrei o caso pormenor a pormenor, adverti o depositário dos papéis da necessidade de uma investigação demorada. No dia seguinte, estourou a bomba.”

Mário Rodrigues

Foi uma comissão tumultuada por problemas como divergências entre os peritos e a saída dos representantes de Bernardes. O laudo final pela autenticidade da primeira carta (a segunda não foi examinada) foi aprovado pelo colegiado em assembleia do clube.

Os militares seguiram na agitação. Bernardes venceu as eleições. Oito meses após a publicação da primeira carta, jornais governistas, como Gazeta de Notícias e O Paiz, divulgaram confissões de Lacerda e Guimarães. Ambos confirmaram ter produzido e divulgado as falsificações, embora negassem ter tentado ganhar dinheiro com elas. O Correio – apelidado pela imprensa adversária de “Corsário da Manhã” – tentou, em 2 de julho, com declarações dúbias de Guimarães, desmentir o desmentido. Foi inútil. O assunto estava morto. Não para os militares. Inconformados com a vitória de Bernardes, demonstrariam o desagrado com um episódio que marcaria a República: o 5 de julho de 1922.

Clube Militar defendeu as cartas falsas e promoveu indisciplina

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Quando o Clube Militar foi fundado, em 1887, o Império se aproximava do fim, e as Forças Armadas iniciavam seu período de ascensão política, que se confundiu com a República. Desde o início do novo regime, a liderança militar via a nova ordem como obra sua. Talvez por isso, criador e criatura tiveram uma relação tumultuada.

Em 133 anos, o processo envolveu episódios como a proclamação de 15 de novembro de 1889. Passou nos anos 1940 e 1950 por lutas nacionalistas sobre riquezas nacionais. Dividiu a classe na Guerra Fria, sob o fantasma do comunismo. Entrou no século 21 alinhado ao bolsonarismo, defendendo conspirações, como a rejeição ao voto eletrônico.

O Clube Militar esteve na origem do movimento que teve seu desfecho na marcha suicida de Siqueira Campos e seus companheiros por Copacabana em 6 de julho de 1922. A crise teve o presidente da entidade, Hermes da Fonseca, como pivô, e jovens militares como principais agentes. Hermes seria preso, e o clube, fechado por seis meses.

A partir do fim dos anos 1940, o clube se dividiu entre nacionalistas e conservadores. Após o golpe de 1964, deixou a política e se transformou em entidade recreativa. Mais de 50 anos depois, ele soltou, em 2021, nota defendendo o “voto impresso auditável”. A defesa da tese de Jair Bolsonaro é um sinal do alinhamento ao ex-capitão. A importância política do clube entre oficiais da ativa, contudo, é reduzida.

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