BRASÍLIA - Enquanto o número de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) cresceu quase cinco vezes durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a verba empenhada pelo Exército para fiscalizar as armas de fogo e os registros desses atiradores caiu 37% no mesmo período.
Uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU) mostra que o orçamento do Exército dedicado a registro e fiscalização de produtos controlados passou de R$ 30,8 milhões em 2018 para R$ 19,4 milhões em 2022. O dado não considera a inflação registrada no período, o que tornaria a redução maior ainda.
Ao mesmo tempo, o número de Certificados de Registros (CRs) de CACs pulou de 191,4 mil para 898,3 mil no último ano do governo Bolsonaro, uma alta de 469%. O grupo se tornou o maior segmento armado do Brasil, superior até ao conjunto de pessoal ativo de todas as polícias militares e Forças Armadas.
“Nota-se, pois, um manifesto descompasso entre a evolução da concessão de registros para CACs e dos recursos aplicados ao SisFPC [Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados] para suportar suas atividades finalísticas”, afirma o relatório do TCU.
O “raio-x” feito pelo TCU sobre o acesso a armas de fogo controlado pelo Exército é o mais completo dos últimos anos ao cruzar a base de dados dos civis armados do Exército com diversas outras, como a do banco de mandados de prisão e dos tribunais de Justiça. O documento, de caráter sigiloso, foi obtido pelo Estadão.
Procurado, o Exército informou ter se manifestado sobre o relatório no âmbito do processo do TCU, mas se recusou a dar detalhes em razão do caráter sigiloso da ação (leia a íntegra da nota ao fim desta reportagem).
A auditoria do TCU revelou ainda que o Exército permitiu, durante o governo Bolsonaro, o acesso a armas de fogo por pessoas condenadas por crimes como tráfico de drogas, homicídio e lesão corporal e que estão foragidos, com mandados de segurança em aberto.
Os armamentos também foram liberados a indivíduos suspeitos de serem laranjas do crime organizado. Além disso, um total de 16.669 munições foi adquirido por 94 pessoas declaradas como mortas.
Em relação ao orçamento reservado pelo Exército para fiscalizar armamentos, o TCU aponta ainda que houve uma queda do porcentual de CACs vistoriados pela Força. Aos militares, cabe verificar a regularidade das armas e munições de caçadores, atiradores e colecionadores, checar a segurança do local onde estão os objetos e observar documentos que comprovem a transferência regular de armas para terceiros.
Em 2018, apenas 6% dos CACs do País tiveram suas armas fiscalizadas. Essa taxa, que já era baixa, caiu ano após ano, chegando a 2,4% em 2022.
“Como a quantidade de administrados mudou significativamente a partir de 2019, quase quintuplicando-se em quatro anos, a estrutura do SisFPC tinha de ser incrementada de modo compatível a essa demanda. Desse modo, ao contrário do ocorrido, eram de se esperar investimentos crescentes”, afirma o TCU.
A falta de capacidade para fiscalizar do Exército é acompanhada, ainda, de uma ausência de estudos sobre as alterações, promovidas pelo governo passado, das leis brasileiras que regulam o acesso a armas de fogo. A Força informou ao TCU, no âmbito da auditoria, não ter produzido qualquer estudo, análise de impacto, nota técnica ou documento similar avaliando as possíveis consequências dos atos normativos de flexibilização.
“Alterações no desenho e na execução de uma política pública exigem estudos e monitoramento dos resultados e impactos – sobretudo quando essa política mexe com aspectos sensíveis da sociedade, como a segurança pública”, explicou a área técnica do TCU.
Em nota ao Estadão, o Exército informou que recebeu o relatório preliminar do TCU e apresentou as manifestações “julgadas de interesse da Força” no âmbito do processo, dentro do prazo determinado.
“Vale ressaltar que trata-se de documento preparatório e de caráter sigiloso, conforme previsto no Art. 3º, inciso XII do Decreto nº 7.724, de 16 de maio de 2012, que regulamenta a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Assim, não cabem considerações a respeito do seu conteúdo. O Exército vem adotando todas as medidas cabíveis para aperfeiçoar os processos de autorização e fiscalização dos CAC”, acrescentou o Exército, em comunicado.
Uma das medidas do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para reverter a política armamentista da gestão Bolsonaro foi transferir a tarefa de fiscalização de CACs para a Polícia Federal. A migração completa, porém, está prevista somente para o início de 2025.
A avaliação do governo foi a de que o Exército não cumpre a contento a atribuição. No entanto, os termos da transferência ainda não estão claros e é possível que uma parte do serviço fique com os militares. Isso porque o Exército afirma dispor de 2,2 mil homens para atuar exclusivamente nos setores de fiscalização de produtos controlados. A PF tem efetivo total de cerca de 14 mil pessoas para todas as atividades.
“Os dados apresentados são importantes porque confirmam o que pesquisadores e gestores já sabiam e apontam para a correta decisão do governo federal em passar essas atribuições para a Polícia Federal. Mas aqui fica um alerta, é preciso um investimento em estrutura e pessoal para que a Polícia Federal possa fazer essa fiscalização e também possa ir atrás dessas armas”, afirmou Roberto Uchoa, policial federal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
A gestão de Lula, por meio de decretos, também desfez regras de Bolsonaro para reduzir o arsenal liberado para civis. Entre as medidas, por exemplo, estão a redução de quatro para dois no total de armas que civis podem ter para defesa pessoal e a diminuição de 200 para 50 no número de munições por arma, por ano.
Além disso, calibres que foram liberados no governo passado, como o 9 mm, voltaram a ser restritos, em razão do poder de destruição que oferecem.
A assessoria do ex-presidente Jair Bolsonaro não comentou.