O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) enviou na sexta-feira, 10, um ofício ao Ministério Público do Estado em que relata indícios de irregularidades no Instituto Adolfo Lutz quanto ao armazenamento de amostras para testes do novo coronavírus.
Segundo o documento, a instituição recebeu, entre 27 de janeiro e 6 de março, 28,8 mil amostras, das quais 7,8 mil haviam sido testadas, considerando que a capacidade diária para realizar testes é de 1,4 mil. Na quinta, 9, a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo divulgou um boletim epidemiológico informando que mais de 30 mil exames estavam na fila para investigação no Instituto Adolfo Lutz.
Para o Cremesp, a quantidade de amostras no instituto "excede absolutamente a capacidade de armazenamento no sistema de acondicionamento em baixas temperaturas". O conselho afirmou em nota divulgada em seu site que cerca de 20 mil amostras sem processamento foram encontradas em geladeiras indicadas para a conservação por até 72 horas. Não ficou claro se o material estava ali por tempo além desse.
A grande quantidade de amostras somada às supostas condições irregulares de armazenamento poderiam interferir na confiabilidade dos resultados dos testes, diz o ofício, e estariam fora dos protocolos internacionais e até mesmo do próprio Adolfo Lutz.
"As amostras acomodadas no instituto, em sua esmagadora maioria, estão inapropriadas ou imprestáveis para que sejam realizados testes em atendimento dos critérios e protocolos mínimos de confiabilidade e efetividade", afirma o documento assinado pela presidente do Cremesp, Irene Abramovich, e pelo diretor Angelo Vattimo. Além de acionar o Ministério Público, o conselho abriu sindicância para investigar as responsabilidades dos médicos e gestores do instituto.
O conselho aponta ainda que "grande quantidade de amostras que chegaram ao Instituto Adolfo Lutz foram devolvidas à origem", pois estavam inadequadas. O ofício informa também que, segundo diretores presentes no dia da fiscalização, que se manifestaram em nome da instituição, há dificuldade na quantidade de kits. "Informaram que são entregues poucos insumos e reagentes, o que limitou demasiadamente a consecução dos testes."
Para a médica epidemiologista Eliana Wendland, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, os laboratórios não deveriam receber mais amostras do que a capacidade que suportam. Ela explica que amostras sem processamento podem ficar na geladeira por até 72 horas e, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), numa temperatura entre 4 e 8 graus Celsius. Se o material precisar ser mantido por mais tempo do que isso, antes de ser processado, a recomendação é congelar a -70ºC ou menos. No freezer, a amostra pode ficar por tempo indeterminado.
"Se deixar muito tempo fora da conservação adequada, a amostra pode perder o RNA (identidade genética)", diz Eliana, o que vai comprometer a qualidade do teste. Uma amostra bem acondicionada deve seguir os protocolos de armazenamento, temperatura e manuseio adequados estabelecidos pelas entidades de saúde. "O grande problema da capacidade dos laboratórios é processar todas as amostras que chegam", pontua a professora.
De forma geral, o presidente da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica, Wilson Shcolnik, afirma que se as boas práticas não forem adotadas em todos os processos de análise, "o que pode acontecer é ter resultados imprecisos".
"As boas práticas laboratoriais recomendam cuidados na fase pré-analítica, em que tem coleta, acondicionamento e transporte das amostras, na fase analítica, que tem de ter calibração de equipamentos, validação de métodos, controle de qualidade, e pós-analítica, em que você comunica os resultados dos exames, podendo fazer recomendação ou observação nos laudos", explica ele. Shcolnik afirma que as recomendações variam para cada tipo de exame e concorda que a fase pré-analítica pe crucial para bons resultados no futuro.
Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde afirmou que "o protocolo adotado pela OMS para diagnóstico de covid-19 não define tempo mínimo de manutenção sob refrigeração. A recomendação é manter a amostra refrigerada, ou a -20ºC ou a -70ºC. O Adolfo Lutz possui geladeiras e freezers com capacidade para armazenamento seguindo essas indicações".
Embora haja uma recomendação da entidade mundial para armazenamento de amostras por até 72 horas sob refrigeração, a secretaria disse que pesquisadores do instituto já realizaram testes de viabilidade de detecção do novo coronavírus em amostras mantidas em refrigeração por mais de uma semana, identificando o vírus normalmente.
A professora Eliana avalia que isso pode funcionar, mas ressalta que, quando as amostras são conservadas e processadas fora do protocolo, corre-se o risco de ter problemas na detecção do novo coronavírus. "Para poder dizer isso, a gente teria que ter frações da mesma amostra expostas a diferentes tempos e os resultados deveriam ser os mesmos."