Li por aqui que a venda de livros cresceu ao longo da pandemia. Achei bastante curioso. Sobretudo depois de um início de quarentena em que as pessoas enviaram e receberam dezenas de livros eletrônicos de graça. Duvido que já tenham lido tudo – aposto que não leram foi nada. E, mesmo assim, as vendas ultrapassaram em volume o ano anterior. Vejo dois fenômenos diferentes acontecendo. Um é mais gente lendo. Outro é mais gente comprando livro. Uma explicação que vem à mente logo de cara, e que estaria por trás de ambos, é a mudança da nossa rotina. Com a pandemia, haveria mais tempo disponível para o entretenimento. Como as opções de lazer se restringiram, sem possibilidade de ir a cinemas, teatros ou mesmo fazer happy hours, os livros podem ter ocupado um espaço até então inédito. É uma boa hipótese, mas não creio que seja só isso. Por trás da compra dos livros, me parece não apenas haver mais vontade de ler – se fosse só isso, bastaria escarafunchar aqueles gigabytes de arquivos recebidos para encontrar um título que interessasse. Existem dois outros aspectos. O primeiro é a fisicalidade do livro. Eu não tenho nada contra e-books, mas o ser humano é uma criatura analógica por excelência e, por mais prático que seja um leitor eletrônico, o folhear, dobrar, riscar do livro acrescenta outras dimensões na experiência da leitura. No mundo todo, o avanço dos e-books é muito mais lento do que se esperaria se nos pautássemos só pela praticidade, numa tendência que não vem mudando com o passar do tempo. Além disso, a compra traz um valor agregado nessa miríade de conteúdos que temos à mão: as editoras são uma chancela para a obra; quando é tão difícil escolher o que ler, pesa a favor de um título o fato de ser sido selecionado por uma equipe profissional. O leitor opta por pagar para ter essa espécie de curadoria. Mas ninguém estaria comprando mais livros se não quisesse ler, motivador principal por trás desse consumo. E ter mais tempo e menos opções também não explica tudo. Em vez do trabalhoso prazer da leitura, as pessoas poderiam ter ficado apenas no streaming de filmes e séries, ou preguiçosamente navegando pelas redes sociais num ciclo fútil. A escolha da leitura fala muito sobre o poder dessa atividade para nos ajudar a atravessar esses tempos pandêmicos. Acredito que a leitura, com sua capacidade de nos transportar para outras vidas, foi – e continua sendo – uma válvula de escape nesses meses. Fosse vivenciando o crescimento de uma adolescente italiana ( A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante), acompanhando a internação de uma jornalista num manicômio ( Dez Dias em Um Hospício, de Nellie Bly), vendo homens engravidando para sobreviver num planeta colonizado por insetos conscientes ( Filhos de Sangue, de Octavia Butler) ou até acompanhado a saga de jovens sobreviventes na Terra pós-apocalíptica ( O Ano do Dilúvio, de Margaret Atwood), em cada livro que mergulhei ampliei minha visão de mundo ao mesmo tempo em que dava um alívio para minha mente tão cansada da realidade imediata. Ao contrário da pandemia, tomara que esse hábito tenha vindo para ficar. É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’