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Psiquiatria e sociedade

Opinião | Raiva passageira

Apesar do preconceito contra emoções, não é de todo ruim usá-las para guiar decisões

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Vivemos tempos raivosos. Nesta época em que eu tenho a impressão de que todos se consideram sujeitos de direitos e ninguém pensa no dever, não me espanta ver tanta raiva à solta. Afinal, ela surge imediatamente ao julgarmos termos sido vítimas de injustiça – se cremos que nossos direitos foram usurpados de alguma maneira, imediatamente somos tomados de raiva. Embora haja quem afirme ser o contrário: seria ela o gatilho da indignação – primeiro sentiríamos raiva, e então, imediatamente, passaríamos a acreditar que nós fomos injustiçados. Mais rápida e intensa, a emoção precederia a razão. E com tanto direito de sobra não há de faltar raiva.

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Apesar do preconceito contra as emoções, não é de todo ruim usá-las como guia para nossas decisões. Existem diversos experimentos mostrando que nosso coração seria um guia eficaz se soubéssemos escutá-lo. Jogadores de xadrez, por exemplo, apresentam aumento da frequência cardíaca antes de fazerem uma jogada ruim. Há um experimento famoso, no qual as pessoas escolhem cartas com as quais podem ganhar ou perder dinheiro. Existem dois montes dos quais elas podem escolher, mas um paga melhor que o outro. Antes mesmo que as pessoas tomem consciência dessa diferença, sensores mostram que suas mãos suam mais – de nervoso – quando elas se dirigem para o bloco que paga menos. Mesmo que não saibam disso.

Há quem diga que essa é a única maneira de diferenciar o certo do errado. O filósofo escocês David Hume (1711-1776) propôs o critério emotivo para saber se algo era moralmente bom. O raciocínio não levaria a lugar algum até que a reflexão se tornasse “um sentimento de desaprovação.” O subjetivismo afirma que nós sentimos o que é certo e errado.

O problema é que ser guiado pela emoção pode ajudar um enxadrista ou um jogador diante das cartas, mas seria uma forma temerária de escrever um código penal. 

Voltando ao caso da raiva. Ela é muito eficiente em sinalizar para nós que está acontecendo uma injustiça, mas está longe de ser um meio fidedigno para encontrarmos o gabarito que defina o que é certo e o que é errado. Afinal, ela pode ser motivada por fatores que nada tenham a ver com um parâmetro verdadeiramente moral.

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Pense nos taxistas. Em cidades do mundo todo, não apenas no Brasil, eles foram tomados de ódio contra aplicativos de transporte individual como Uber, Cabify e outros semelhantes. Ao permitir que qualquer cidadão habilitado se ofereça para levar alguém daqui para lá, essas novas plataformas trouxeram instabilidade para um mercado que até então não precisava se preocupar com qualquer tipo de concorrência. Com base na raiva que a situação despertou, as alegações de injustiça se multiplicaram: como não precisam prestar contas ao poder público, tal concorrência seria desleal. Não era justo. É um argumento. Mas nem apenas subjetivamente se pode argumentar eticamente.

Uma escola de pensamento chamada utilitarismo propõe uma forma muito distinta de diferenciar certo e errado. A utilidade das ações é que contariam sua capacidade de aumentar bem-estar, satisfação, felicidade, para o maior número de pessoas, reduzindo sofrimento, dor, infelicidade. Ético é aquilo cujas consequências são boas para a maioria das pessoas. O famoso dilema do bonde ilustra a razão utilitária: você está num bonde desgovernado que irá atropelar e matar cinco pessoas. Se puxar uma alavanca, contudo, ele mudará de trilho e matará apenas uma. O que você faz? A maioria das pessoas diz que puxaria, num raciocínio tipicamente utilitário – melhor morrer um do que cinco. Segure suas emoções – o que contam são as consequências. 

Pode-se então argumentar tranquilamente que os aplicativos de transporte não são injustos. Segundo o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), eles aumentam a concorrência e beneficiando os passageiros, além de suprirem falhas no mercado de transporte individual. Geram ainda renda para mais de meio milhão de brasileiros. Proibi-los ou regulamentá-los a ponto de privá-los de suas características, portanto, prejudicaria usuários e motoristas.

Seria justo do ponto de vista do subjetivismo. Seria injusto a partir do utilitarismo. E você, qual escola quer seguir? 

* É psiquiatra. 

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Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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