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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Vivendo e aprendendo

Passar por experiências desconfortáveis podem ajudar a entender como aprendemos algo novo

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O ser humano é bicho estranho. Quem mais no planeta – quiçá no universo – gosta de coisas desagradáveis? A gente gosta de pimenta sendo que ela produz dor. De filmes de terror e do medo que eles causam. Buscamos a sensação de desespero nos parques de diversão. 

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Isso para não entrar na esfera da sexualidade. Cada um desses assuntos renderia uma coluna por si só, mas hoje quero falar de uma coisa desagradável que adoro, mas não sei se as pessoas gostam tanto como eu. Quase todo mundo já passou por isso, mas talvez não desfrutem tanto quanto poderiam. 

Adoro a aflição que sinto quando faço uma viagem para um lugar bem diferente, no qual não tenho noção dos procedimentos mais básicos. Sabe aquela desorientação que sentimos diante de perguntas simples? Posso ou não estacionar aqui? Como funciona essa máquina de café? Cadê a maçaneta dessa porta? Onde acendo a luz? Exatamente. Descobri recentemente que os franceses têm até um nome para essa sensação: dépaysement

O desconforto é ainda pior quando há pessoas na fila, impacientes e incrédulas diante de minha ignorância para resolver algo tão trivial. Como é possível que eu não saiba aquilo, parecem perguntar com olhares julgadores. 

Por que gosto dessa sensação? Porque ela é a melhor maneira de entendermos como funciona o aprendizado mais fundamental. Claro que sempre é possível estudar de cabo a rabo o seu destino turístico num guia de viagem enciclopédico, minimizando tais situações. Mas sempre seremos surpreendidos pela realidade local – mais ou menos como estudar um idioma. 

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Mesmo o melhor aluno da escola de inglês passará por apuros quando se vir num país anglófono, sem um professor por perto, e um funcionário lhe fizer uma pergunta padrão que não é ensinada nas apostilas. “Sorry?”, terá de repetir umas três ou quatro vezes diante de um vendedor cada vez mais irritado ao se dar conta que a comissão que ganhará por aquela venda está ficando cada vez menor em relação ao trabalho. 

A vida, afinal, não se aprende nos livros. Por isso chamei esse aprendizado de fundamental. Nessas situações, experimentamos um pouco da forma como as crianças se sentem diante do mundo. Elas não têm pressupostos, não conhecem as regras locais, não sabem o que se espera delas. 

As crianças aprendem à medida em que as coisas acontecem, quebrando os objetos, falando o que não devem, demorando demais ou se precipitando, impacientando quem está ao seu redor. Adquirir fluência no cotidiano não é como aprender a fórmula de Bhaskara. Só é possível na prática – e incomodando muita gente.

Todos passamos por isso quando somos pequenos, só não temos consciência do que está acontecendo. Claro que mesmo nessa fase já é altamente prazeroso resolver os problemas. Isso fica claro no riso estampado nas crianças conforme aprendem a andar, a pular num pé só, a amarrar o cadarço, a comprar um sorvete. 

Mas o prazer é maior quando somos adultos. Conscientes do processo, podemos atuar nele como atores e espectadores ao mesmo tempo. Sentimos na pele o que é não ter a menor noção de algo que todo mundo parece considerar simples, percebemos o esforço mental necessário para solucionar o enigma, notamos caminhos bem-sucedidos e becos sem saída que o pensamento percorre. Tudo isso enquanto tentamos manter a calma – nossa e de nossos anfitriões estrangeiros. Ao final, aprendemos com os fracassos e vibramos com os triunfos – exatamente como as crianças –, mas com a vantagem de podermos fazê-lo de modo consciente. 

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É bem possível que as pessoas também gostem dessa experiência, mesmo que não saibam. A indústria do turismo segue de vento em popa, afinal de contas, mesmo depois de a internet nos possibilitar conhecer o mundo sem levantar da cadeira. 

Só o Google oferece tours virtuais por mais de 2 mil pontos turísticos. Não é só para ver que viajamos, mas para viver novas realidades. E viver, como essas aflitivas experiências mostram, é um aprendizado prazeroso, mas que não ocorre sem a frustração de muitos erros.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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