‘Médicos estão focando na doença e esquecendo de olhar para as pessoas’, diz cardiologista premiado

Um dos médicos mais admirados do País ressalta a importância de conhecer os pacientes de forma integral – e não apenas os aspectos biológicos e químicos sobre os problemas que eles enfrentam

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Por Thaís Manarini
Foto: TABA BENEDICTO
Entrevista comProtásio Lemos da LuzCardiologista e pesquisador sênior do InCor

No dia 12 de julho, o cardiologista Protásio Lemos da Luz, pesquisador sênior do Instituto do Coração (InCor), recebeu a medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico devido à sua contribuição para o desenvolvimento científico no país. Autor e coautor de mais de 500 estudos nacionais e internacionais, o cientista ainda realiza atendimentos em seu consultório quase todos os dias. “Fui criado na beira do leito”, diz ele, que se formou em Medicina em 1965.

Não é tão comum encontrar um médico que alie uma produção científica tão intensa com a prática médica e o cuidado com o paciente. Como se não bastasse, ele foi professor, é membro ativo de entidades de classe – inclusive, já presidiu a Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp) – e tem participação na formação de inúmeros profissionais. A atuação em tantas frentes faz Luz ter uma visão diferenciada em relação a várias questões na área de saúde. “O avanço da tecnologia é ótimo, ajuda muito na prática médica. Mas temos que considerar sempre o paciente e as circunstâncias em que doenças ocorrem”, defende.

O Estadão conversou com o médico, que já foi considerado um dos cardiologistas mais importantes do Brasil pelos seus pares em pesquisa com 9,5 mil colegas. Confira:

O sr. acaba de receber a medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico por causa da sua contribuição para o desenvolvimento científico no País. Como é isso em um momento em que a ciência está tão em alta entre a população?

Eu não posso me estender sobre o porquê me deram esse prêmio, mas posso dizer o que eu faço. Lá atrás, depois de ter finalizado um curso em Cardiologia, houve a decisão de criar o Instituto do Coração (InCor). E o professor Fúlvio Pileggi (1927-2021) disse que precisava de alguém para ir aos Estados Unidos estudar choque (cardíaco). Fui atrás, então, de lugares em que pudesse fazer isso, e passei dois anos na University of Southern California estudando terapia intensiva. Depois, fui para um hospital afiliado da Universidade da Califórnia (UCLA), onde passei três anos só estudando infarto em cães. Então, completei cinco anos em pós-graduações no exterior enquanto o InCor estava sendo feito. Quando o prédio ficou pronto, vim embora. Comecei na Divisão de Experimentação do Instituto, mas voltei a fazer clínica (atender pacientes) porque fui criado na beira do leito.

Fiquei fazendo investigação experimental sempre relacionada à aterosclerose coronária. E uma das coisas que iniciei foram os estudos sobre o endotélio, que inclusive resultaram em dois livros. Um tem mais de 10 anos. O outro foi publicado nos Estados Unidos há uns três ou quatro anos, e agora a editora pediu uma segunda edição. É um livro com 50 capítulos, com participação de cinco investigadores do exterior, mas o resto é tudo experiência brasileira.

Por falar em endotélio, assunto no qual o sr. é um pioneiro, qual a importância dele? Os estudos sobre esse tecido são relativamente recentes, certo?

É uma coisa mais recente mesmo, que tem uns 20 anos, tempo que é considerado historicamente curto na Medicina. Ele é tão importante que até levou os pesquisadores Robert Furchgott, Ferid Murad e Louis Ignarro a ganharem o Prêmio Nobel de Medicina (em 1998). E eu comecei os estudos sobre ele no InCor. Criei um laboratório para isso.

Não se tinha noção da importância do endotélio para as doenças cardiovasculares. Isso só aconteceu quando o doutor Furchgott começou as primeiras investigações. Ele notou que dentro dos vasos tem uma camada muito fina de células. Esse é o endotélio, que tem grandes funções. Esse tecido é essencial para a circulação normal do sangue. E quando o endotélio é alterado, ocorrem muitas coisas. Inicialmente, temos a aterosclerose. E ele tem participação em síndromes agudas, como o infarto.

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Uma lesão ali pode levar à formação de um trombo local, sendo a causa de um infarto. São alterações que ocorrem também em um AVC (acidente vascular cerebral). Com o tempo, descobrimos múltiplas funções do endotélio. Por isso se tornou uma coisa importante. Ele é afetado por fumo, hipertensão, obesidade, etc. Tudo isso altera o endotélio.

Mesmo contribuindo de maneira tão expressiva para a produção científica, o sr. escreveu um livro cujo título é “Nem só de ciência se faz a cura – o que os pacientes me ensinaram”. Por quê?

O exercício da Medicina é uma coisa complexa. E ele não depende apenas do conhecimento estritamente científico – quero dizer biológico, químico etc. Depende muito também do relacionamento que temos com os pacientes.

A doença se manifesta nas pessoas, e isso não é uma experiência de laboratório. Então, escrevi esse livro que, aliás, está na terceira edição, e trata de vários aspectos ligados à interação médico-paciente. Enfatizo muito essa necessidade de o médico compreender o ser humano.

Também pensando na prática médica, e na formação dos mais jovens, escrevi outro livro, sobre as novas faces da Medicina. Nele, fiz uma análise daquilo que acho que são os grandes desenvolvimentos atuais. Por exemplo: quando eu era residente, não tinha tomografia, ecocardiograma e ressonância. Não tínhamos os testes de sangue que vemos hoje, que são muito importantes para o tratamento de doenças cardiovasculares. E fui ilustrando isso, e mostrando a evolução.

Atualmente, a gente vê uma discussão intensa sobre o que a ciência diz que funciona ou não na prática médica. O que acha disso?

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A Medicina não é uma profissão para ganhar dinheiro. Tinha um professor de clínica médica de Curitiba, o Lyzandro de Paula Santos Lima (1906-1982), que falava uma frase espetacular: “para ganhar dinheiro em Medicina, não precisa saber Medicina, e sim saber ganhar dinheiro”. É perfeita.

Veja: virou uma indústria. Tem muita escola médica que não tem estrutura: não tem hospital, não tem professor, não tem tecnologia. Mas faz-se escola médica com a finalidade de ganhar dinheiro.

E a prática médica deve se basear em evidência científica sólida. Eu insisto muito nisso. Tem muita coisa que as pessoas simplesmente ‘chutam’, e falam que faz bem sem evidência científica. Insisto muito que o médico, ao adotar uma atitude em relação à Medicina, tem que se basear em dados científicos sólidos, e não em anedota.

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O cardiologista Protásio Lemos da Luz, pesquisador sênior do InCor, com sua medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico.  Foto: Taba Benedicto/Estadão

Mas como aliar isso com aquilo que o sr. defende, que ‘nem só de ciência se faz a cura’?

O ser humano é constituído de alma e corpo. Pode-se dizer até que a alma domina o corpo. Quando vamos tratar a doença de uma pessoa, temos que considerar as duas coisas. Mas tem a parte científica, claro. Como no caso do câncer: existe uma proliferação incontrolável de um determinado grupo de células. Na aterosclerose, temos a formação de placas nas artérias e complicações. Isso é o que chamamos de ciência. São fenômenos que podem ser estudados em laboratório, que podemos ver.

Mas a ansiedade, a dor, o medo, a necessidade de tomar decisões, a importância do amparo social, a relevância da religião… Tudo isso fica em outra área. E não se pode, em Medicina, separar uma coisa da outra. Quem tem câncer sofre de duas maneiras: por causa da doença, que atrapalha os órgãos, e também emocionalmente. É nisso que insisto.

Vamos lembrar dos médicos antigos, de um século atrás. Não tinha ecocardiograma, tomografia, ressonância, exame de sangue etc. Ele sabia da parte biológica e física de acordo com o que era possível naquela época, mas conhecia as pessoas.

Há uma tendência, hoje, em várias situações, de privilegiar a tecnologia. E ouço muito isso no consultório: “Ah, o outro médico pediu 20 exames”. E isso antes de conversar com o paciente, antes de saber o que ele sente, quem ele é. A tecnologia não resolve tudo.

E também não é verdade que as coisas que surgiram mais recentemente são necessariamente melhores e vão substituir as antigas. O progresso é feito de acréscimo de conhecimentos que sejam verdadeiros. Não significa que deve descartar aquilo que já é conhecido. Nem tudo que é novo é melhor.

E como o sr. enxerga a relação médico-paciente hoje? Precisa melhorar?

O avanço da tecnologia é muito importante, rápido. Ela ajuda e muito o exercício médico. Mas a gente não pode se apoiar exclusivamente na tecnologia. Temos que considerar sempre o paciente e as circunstâncias em que doenças ocorrem. Isso deve fazer parte da formação médica, para que esse profissional saia para a prática com a concepção correta sobre a constituição dualista do ser humano.

Acho que médicos estão deixando muito de lado o olhar para a pessoa. E o sistema de saúde contribui para isso também. O tempo dedicado para cada consulta é muito pequeno. Em média, são oito minutos. Em oito minutos você não consegue conhecer alguém, entender o que está acontecendo. Isso é uma coisa que precisa ser corrigida. Essa é a média de atendimento pelo sistema público de saúde e por convênio.

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Fora isso, o paciente é atendido um dia por um médico, depois por outro. E a transmissão de informações é imprecisa. Há países em que existe o registro eletrônico do paciente. E isso evita repetir exames e dá uma ideia de como está de fato a evolução da pessoa. Em parte, isso está sendo feito no InCor. Mas precisamos disso no Brasil inteiro.

O sr. acha que ser um produtor de ciência que, ao mesmo tempo, atende pacientes, te traz um olhar diferenciado para certas questões?

Acredito que sim. Mas nem todo mundo gosta de fazer pesquisa porque demanda tempo, muita organização e não traz resultados em curto prazo. Tem pessoas que gostam mais da Medicina prática, que é a aplicação do conhecimento. As duas coisas não são incompatíveis, mas também não são muito frequentes. Não há muita gente que faça as duas coisas ao mesmo tempo.

Mas o fato é que, quando você faz pesquisa, a tendência é ser mais criterioso porque temos que procurar a verdade, e a verdade é muito complexa. Você não acha com facilidade. Tem que eliminar vários fatores que interferem em certa intervenção. Quem faz pesquisa, em geral, tem espírito mais crítico.

Na prática clínica, muitas vezes se toma certas atitudes e a pessoa melhora. Só que isso pode acontecer devido a uma evolução natural da própria doença. Não foi o chá que ela bebeu, por exemplo. Um outro indivíduo que não fez nada pode ter melhorado também. E essa questão de critério na análise de resultados é muito importante.

Vou dar um exemplo. Lá atrás, um cirurgião propôs que era preciso tirar a mama e fazer um esvaziamento cervical para tratar o câncer. Ele tirava todo o músculo. Aquilo deixava as pessoas com o tórax desfigurado. E por muito tempo isso foi feito. De repente, alguém resolveu realizar uma cirurgia pequena. O resultado foi igual. Hoje, ninguém mais faz dissecção ampla. Mas, por muito tempo, isso aconteceu devido a uma experiência sem controle, que leva a erros.

Os charlatões se apoiam em experiências individuais para falar que as coisas funcionam. Fora que podem escolher o paciente no qual aplicam o tratamento também. E quando você considera a população em geral, não é a mesma coisa. Daí a importância de ter grupos de controle e também conhecimento científico.

Um cientista que não atende paciente, e um clínico que não faz pesquisa: acha que esses dois polos precisam se entender melhor?

A Medicina Translacional é importante para isso. Eu fundei a Sociedade de Cardiologia Translacional e a finalidade é justamente tentar aproximar o investigador básico daquele indivíduo da clínica e do tratamento. Porque uma coisa que acontecia antes, e segue acontecendo, é que muitas vezes uma descoberta científica importante fica esquecida no laboratório devido a essa falta de comunicação.

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Por exemplo: as observações em relação ao impacto do colesterol na aterosclerose são de mais ou menos 1908, e foram feitas por cientistas russos. Mas só em 1950 tivemos o primeiro estudo (Estudo de Framingham) para analisar a importância do colesterol como fator de risco, e aí se notou que ele era relevante, e vieram as drogas. Hoje, sabemos que o tratamento para a hipercolesterolemia (colesterol alto) diminui o risco de eventos cardíacos. Mas demorou muito.

Daí a necessidade de integrar a pesquisa básica com a clínica. Se o investigador básico fica isolado, pode descobrir algo importante e não chegar na aplicação clínica. E quem só faz clínica pode não entender mecanismos detalhados de uma doença e não optar pelos melhores caminhos.

O sr. foi considerado por seus pares um dos mais influentes cardiologistas brasileiros do século XX. Como enxerga o cenário das doenças cardiovasculares atualmente?

Eu acho que é preocupante. A doença cardíaca é a maior causa de morte e morbidade no País. Os maiores determinantes de aterosclerose são fatores de risco clássicos, como hipertensão, fumo, obesidade, diabetes e colesterol alto. São os principais responsáveis pelo desenvolvimento da doença. A parte genética contribui em menor parte. E esses fatores estão muito relacionados ao estilo de vida. O que vejo, no Brasil, é que eles são muito prevalentes.

E quem tem hipertensão ou colesterol alto, por exemplo, nem sempre faz o tratamento em longo prazo, que é necessário. Não checa se está dando efeito ou não. Esse problema de adesão é muito sério e acontece no mundo todo. Um dos motivos para isso é que a doença aterosclerótica é silenciosa, ela não dói.

Temos outra questão ainda. No Brasil, cerca de 70% da população é atendida no sistema público de saúde. E não há estrutura para atender todo mundo, sobretudo em longo prazo. Tudo isso contribui para a gravidade do problema cardiovascular.

E no que o sr. está trabalhando atualmente?

O estudo principal que estou coordenando agora tem o objetivo de avaliar as pessoas que têm uma lesão coronária chamada não-obstrutiva. Ou seja, são lesões que não causam alteração no fluxo sanguíneo. São indivíduos que apresentam 50% ou menos de obstrução nas artérias.

Estamos analisando esses pacientes ao longo de cinco anos de evolução. É um projeto interessante, porque não temos diretrizes sobre o que fazer nessas situações. É um quadro menos grave? É isso que queremos descobrir. Além disso, atendo no consultório basicamente todos os dias.

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