Basta uma busca rápida nas redes sociais para encontrar a solução para quase qualquer problema: corrigir um suposto desequilíbrio hormonal. A promessa é tentadora — uma injeção, um cápsula ou, principalmente, um implante, e, voilà, os sintomas desaparecem. No centro desse discurso simplista, a testosterona tem certo protagonismo. E, mesmo sem respaldo científico para muitas das indicações, a adesão cresce a passos largos.
Por trás desse fenômeno, médicos que se autodenominam “hormonologistas”, “moduladores” ou “especialistas em anti-aging” — áreas não reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina — usam o marketing digital para promover a substância como um elixir infalível. “Libido baixa? Cansaço? Diabetes? Queda de cabelo? Quer ganhar músculos? É só repor testosterona.” A lógica segue essa linha.
Para os homens, as indicações costumam envolver doses extremamente altas, ou seja, a famosa ‘bomba’ disfarçada de reposição. Já para as mulheres, os discursos são apelativos e frequentemente carregados de sexismo. A chamada “baixa testosterona” é associada ao fim dos relacionamentos, às dificuldades sexuais e até à perda de atratividade.

“Você prefere usar testosterona ou ficar fugindo do seu marido?”, provoca um médico com 500 mil seguidores. Em outro vídeo, um segundo médico afirma que, após iniciar o tratamento, uma paciente com “desproporção de beleza” passou a ser “rodeada de homens.” “O hormônio muda até o cheiro… É algo instintivo. Os homens olham e pensam inconscientemente: ‘Essa mulher está reprodutível’, e se sentem atraídos”, diz o médico. Ambos não têm especialidade registrada no CFM.
Na opinião do endocrinologista Alexandre Hohl, diretor do Departamento de Endocrinologia Feminina da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), a popularização dos hormônios como um “tratamento universal” reflete um fenômeno maior: a transformação dessas substâncias em uma indústria altamente lucrativa — o que não se limita à testosterona.
“Médicos que administram hormônios por meio de implantes hormonais, por exemplo, faturam alto. Esses dispositivos têm um custo elevado, e a divulgação é feita sem qualquer critério.”
Isso não significa, contudo, que a testosterona seja uma vilã. A grande questão é que ela está longe de ser a solução para tudo e todos. “Quando prescrita corretamente, traz benefícios. O problema é o uso incorreto. Nesse caso, em vez de fornecer soluções, vira a causa de problemas, podendo inclusive levar à morte”, alerta o endocrinologista.
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Homens: quando usar a testosterona?
Neles, é comum que os níveis de testosterona comecem a diminuir após os 40 anos. O processo faz parte do envelhecimento natural e, na maioria das vezes, não exige intervenção. No entanto, em alguns casos, a queda pode ser mais acentuada, resultando em sintomas como diminuição da libido, disfunção erétil, fadiga, ganho de peso e perda de massa óssea. Quando isso acontece, o quadro é chamado de hipogonadismo — aí, sim, uma reposição de testosterona pode ser útil.
“Quando falamos em reposição hormonal, estamos nos referindo a devolver a testosterona a um nível considerado fisiológico, ou seja, adequado ao organismo”, explica o médico Luiz Torres, presidente da Sociedade Brasileira de Urologia.
A decisão de iniciar o tratamento com o hormônio está longe de ser trivial. Inclusive, um simples exame laboratorial não é suficiente para justificar a reposição — como muitos médicos por aí têm sugerido. A dosagem só deve ser feita quando há sintomas da doença ou fatores predisponentes, como questões genéticas, doenças que afetam a hipófise (glândula que produz hormônios) ou trauma nos testículos.
Isso acontece porque resultados falsamente baixos são comuns, o que torna necessária a repetição da dosagem. Fora que falar em “testosterona baixa” é uma questão muito relativa — em algumas pessoas, uma quantidade pode ser sinônimo de deficiência hormonal, mas em outras, não. “Cada caso é único”, reforça Torres.
Além disso, é necessário levar em conta que nem toda deficiência hormonal deve ser tratada com hormônios. A obesidade, por exemplo, também pode resultar em hipogonadismo. Assim como o diabetes e até o uso de determinados medicamentos, especialmente opioides e corticoides. “Nesses casos, tratar a causa subjacente pode reverter a queda hormonal sem necessidade de reposição”, afirma Hohl.
Segundo Torres, cerca de 30% dos casos costuma ter relação direta com a deficiência de testosterona. Fatores como sobrecarga de trabalho, noites maldormidas, problemas familiares e dificuldades financeiras também têm parcela de culpa. “Tudo isso pode desencadear reações psicossomáticas, como falta de libido, cansaço e fadiga. Ou seja, a moda de sempre culpar o declínio hormonal pela falta de vigor físico e sexual está longe de fazer sentido”.
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Mulheres: quando repor a testosterona?
Segundo a ginecologista Maria Celeste Wender, presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o uso de testosterona em mulheres é, na maioria dos casos, desaconselhado. Há, no entanto, uma única exceção: mulheres na pós-menopausa que vivem uma queda intensa de libido, conhecida como desejo sexual hipoativo.
Porém, antes de qualquer intervenção, é necessário avaliar uma série de fatores que também podem influenciar o desejo sexual. “A paciente pode estar passando por um luto, dificuldades financeiras, problemas relacionais ou questões de saúde mental. Também é importante considerar um histórico de violência sexual”, exemplifica a mastologista Rosemar Macedo, presidente da Comissão Nacional Especializada em Mastologia da Febrasgo.
Outro ponto é que o uso de testosterona, no contexto do desejo sexual hipoativo, só deve ser considerado se a paciente já estiver fazendo reposição com progesterona e estrogênio (ou apenas estrogênio, no caso das mulheres sem útero). Isso ocorre porque esses hormônios também desempenham papel importante na regulação da libido. “Na maioria das vezes, usá-los já resolve o problema. A testosterona deve ser última opção”, ressalta Rosemar.
É válido mencionar uma tática muito usada pelos médicos influencers para credibilizar o uso do hormônio pelas mulheres: exibir exames de pacientes ou compartilhar casos de mulheres que estariam com os níveis de testosterona “lá embaixo”. Uma prática bastante questionável, segundo Maria Celeste. Isso porque, nelas, a quantidade desse hormônio no corpo é naturalmente tão baixa que dificulta a precisão dos exames.
“Não existe esse conceito de ‘baixa testosterona’ em mulheres”, destaca Maria Celeste. “Os exames são usados só para identificar níveis altos, o que pode indicar hiperandrogenismo, geralmente associado a condições como tumores ovarianos, problemas nas glândulas suprarrenais ou síndrome dos ovários policísticos. Fora isso, não há justificativa para a realização do exame. Se alguém afirmar o contrário, pode desconfiar”, afirma.
Riscos do uso indiscriminado
Não há discordância entre os especialistas de que a testosterona pode, sim, proporcionar uma sensação de bem-estar, mesmo quando não é usada da melhor forma. Os músculos crescem, a libido aumenta — nada disso é questionável. Mas a conta chega — e muitas vezes, de forma silenciosa.
Os riscos incluem o comprometimento do fígado, aumento do colesterol e da pressão, além de possíveis eventos trombóticos e cardiovasculares sérios, como arritmias, infartos e AVCs. “Os estudos mostram que quem usa anabolizantes em excesso tem um risco quase três vezes maior de morte em comparação com aqueles que não usam”, destaca Hohl.
Outros problemas comuns são atrofia testicular, ginecomastia (crescimento anormal das mamas do homem), surgimento de acne, crescimento excessivo dos pelos, engrossamento da voz e aumento do clitóris — sendo que os dois últimos são irreversíveis.
Rosemar, por sua vez, alerta para o risco de câncer de mama, uma doença fortemente influenciada por fatores hormonais e que tem aumentado no Brasil — inclusive em mulheres mais jovens, que não são consideradas grupo de risco. “A maioria dos cânceres de mama depende de hormônios para se desenvolver, e o uso inadequado dessas substâncias pode estar relacionado ao aumento de casos”, observa a médica.
Há ainda um agravante típico do cenário atual: raramente a testosterona é usada sozinha. Outros hormônios da moda, como a gestrinona e a ocitocina, podem facilmente entrar no pacote. “O estrago é proporcional: quanto maior a mistura, a dose e o tempo no corpo, maior o risco”, alerta Hohl.
Vale ressaltar, ainda, que os chamados implantes hormonais, frequentemente promovidos pelos médicos influencers, não têm eficácia comprovada e não são registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
“Os poucos estudos disponíveis sobre os são implante são questionáveis, com metodologias frágeis e, na maioria das vezes, conduzidos por quem prescreve. Não à toa, os efeitos colaterais vêm se acumulando”, alerta Rosemar. “Já quando a testosterona é realmente necessária, há alternativas bem estabelecidas: géis transdérmicos e injeções para os homens e géis transdérmicos para as mulheres. São métodos eficazes, respaldados pela ciência e sem os riscos das apostas sem comprovação.”